Transposto de um conto da coletânea “O Informe
de Brodie”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, o filme de Carlos Hugo
Christensen, “A Intrusa” tem justamente por mérito revelar as facetas do pouco
elucidado cinema praticado no sul do Brasil, de ambientação e clima bastante
radicais em comparação ao Rio de Janeiro, à São Paulo e ao Nordeste em geral,
cenários mais comuns às obras cinematográficas brasileiras.
Na aridez da premissa que retrata, “A Intrusa”
é também uma obra que mergulha irreversivelmente na caldalosa mecânica de uma
obsessão irreprimível.
A vastidão agreste dos pampas gaúchos é palco
do convívio dos rústicos irmãos Nilsen, o mais velho Cristiano (José de Abreu)
e o mais jovem Eduardo (Arlindo Barreto, o ator retratado em “Bingo-O Rei das Manhãs”).
Tropeiros naqueles idos de 1896, os dois irmãos
vivem do trabalho no rancho da família que alternam com dedicação graças à
confiança e a sólida amizade que partilham um com o outro.
Aparentemente, eles se bastam, entretanto, um
certo dia Cristiano traz a jovem e bela Juliana (Maria Zilda Bethlem) para
morar com eles acrescentando um elemento que soa dissonante à Eduardo.
Inicialmente amante de Cristiano, Juliana
desperta sentimentos conflitantes no irmão mais novo que, incapaz de lidar com
certa inveja pela ausência do irmão e desejo pela própria Juliana, se entrega
às bebidas e a um comportamento ainda mais hostil e mais promíscuo.
Aos poucos, Juliana passa a dividir a
intimidade dos lençóis também com o jovem Eduardo –tudo com a conivência e a
concordância do outro irmão.
Com o passar do tempo, porém, o triângulo
amoroso vai revelando suas fissuras na forma de atritos cada vez mais
constantes entre os dois irmãos, manifestados por ciúmes que Juliana desperta
em ambos. Em algum momento, Cristiano e Eduardo compreendem o papel
determinante da mulher na dissolução da dinâmica outrora tão eficaz que eles
tinham entre si, e num pacto silencioso resolvem vendê-la para um bordel.
Os dois tentam regressar ao dia-a-dia de
outrora, mas, algo mudou. A lembrança de Juliana ainda os afeta, tornando
impossível regressar à inércia de antes, e assim cada qual escondido do outro,
voltam a visitar Juliana, incapazes de soterrar seu desejo por ela.
Isso leva os Nilsen a decidir comprá-la de
volta, mas a situação que os três retomam, ao voltarem ao convívio debaixo de
um mesmo teto, carece de equilíbrio: Os Irmãos dão-se conta, aos poucos, da
atração incestuosa oculta por seus profundos laços de amizade e no interlúdio
final com Juliana –o primeiro que realizam todos juntos –os irmãos finalmente
levam ela a desempenhar o papel de facilitador, que ela sempre desempenhou, mas
eles até então não haviam se dado conta disso.
Da interiorização escura e noturna, o desfecho
salta para uma panorâmica aberta e ensolarada onde os irmãos parecem
compreender a importância em seu elo e descartam Juliana, consumando uma
espécie de tragédia desde sempre anunciada.
Embora não se isente do cunho sexual a
predominar no estigmatizado cinema nacional da época, o filme de Christensen é
uma realização poderosa em sua frieza e melancolia, na observação algo
taciturna de um machismo enrustido nas relações humanos facilmente
identificável nos arquétipos da personagens feminimas (sempre diante do uso e
do abuso) e masculinas (autoritárias, severas, irredutíveis), ainda que seja
ousado ao colocar uma mulher (ou sua mera presença) como o agente transformador
da narrativa.
No uso onipresente que faz
da ambientação em terras gaúchas e no formidável trabalho do trio de atores que
realizam um interessante e visceral estudo dos tormentos íntimos, “A Intrusa”
se mostra um conto seco e contundente sobre as violentas consequências da
homoafetividade reprimida e das desestabilizadoras pulsões do desejo envolvido
na climática trilha sonora de autoria de Astor Piazzolla.
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