segunda-feira, 23 de março de 2020

Midsommar - O Mal Não Espera A Noite

Numa manobra que está se tornando comum entre realizadores recentes de filmes de terror, a nova obra de Ari Aster, diretor de “Hereditário”, pode ser encarada como um pós-terror: Um filme onde os expedientes do terror servem a um estudo meticuloso, inédito e por vezes rebuscado das aflições íntimas do personagem, ao mesmo tempo que, na auto-consciência de sua narrativa, transfigura os próprios códigos de gênero sem, no entanto, deixar de ser terror.
É um equilíbrio delicado, difícil de ser atingido e mantido, mas que Aster conseguiu executar com méritos em “Hereditário”, e que repete com primor aqui.
Se é possível apontar um cerne imediatamente perceptível na premissa de “Midsommar” diria que é o relacionamento de Dani (a maravilhosa Florence Pugh) e Christian (Jack Reynor, de “De Repente Pai”).
Quando o filme começa, numa série criteriosa de takes que já remetem “Hereditário”, os dois são as duas faces defeituosas de uma mesma moeda: Um relacionamento de fissuras tão evidentes que já se prevê um fim.
Ela lida com a própria carência e dependência. Ele, em meio a uma roda de conversa com os amigos, delibera o provável fim do namoro.
Uma tragédia, porém, dá novo rumo ao que parece inevitável –numa cena onde Aster já assombra o público com sua capacidade para evidenciar o teor poderosamente sinistro dos acontecimentos –e, ao mesmo tempo, arremessa a trama para onde seu realizador planeja: Após um trágico episódio pessoal, Christian já não tem condições de terminar com Dani e, em vez disso, acaba levando-a para onde iria com seu grupo de amigos; a uma comunidade pagã na Suécia, acompanhar os festejos de um festival que, eles esperam, serviria de base para sua tese na faculdade.
A medida que adentram as florestas idílicas do lugar, onde a tal Comunidade Midsommar se localiza, os personagens experimentam um afastamento bastante nítido da civilização, de seus aborrecimentos e desilusões (no caso de Dani), mas também, de suas certezas de segurança e suas zonas de conforto (no caso de todo eles).
Ari Aster é um diretor extremamente perspicaz. Na condução e na encenação, ele nos deixa observar características de seus personagens que, se a princípio parecem adjetivos que meramente os definem enquanto arquétipos do drama, são na verdade elementos que compõem o conceito sobre o qual ele deseja desde o começo versar.
Está em foco o desconforto de Dani, que ela sente, mas se esforça para ignorar. O desconforto de compreender que os amigos de Christian (sobretudo, os dois interpretados por Will Pourter e William Jackson Harper) a enxergam quase como uma intrusa na dinâmica de amizade que haviam planejado; e que o próprio Christian não está, também ele, longe de ver as coisas dessa maneira.
Quando esse grupo de protagonistas chega à Midsommar, o desconforto passa a ser parte fundamental da construção da narrativa (nos takes primorosos da direção de fotografia, no comentário desestabilizador da trilha sonora, e na decisão impetuosa de fazer um filme de terror todo à luz do dia), desta vez, não apenas o desconforto de Dani, mas também o de todos eles, ao se darem conta de que o festival pagão que planejavam testemunhar não é algo tão inocente quanto acreditavam.
De início, eles tentam convencer uns aos outros de que os indícios macabros que presenciaram são reflexos condicionados deles próprios, em resposta a uma cultura que não foram ensinados a compreender. E embora essa percepção seja um dos tópicos de fato da narrativa, é no protagonismo de Dani e de seu flagelo íntimo que o filme não tarda a novamente se concentrar: Logo, os outros personagens vão sendo descartados como forma de afunilar  a premissa numa analogia à qual voltamos à questão do relacionamento em colapso: Os olhares de Christian em direção à outra garota; a aproximação não despida de segundas intenções de Pelle (Vilhelm Blomgren) para junto de Dani.
São nos vinte minutos finais que “Midsommar” mostra ao público que os indícios de que algo estava errado não eram, afinal, apenas indícios –o que converte o conceito da comunidade pagã e dos francamente bizarros e aterradores costumes que a norteiam numa alegoria violenta e implacável do companheirismo e do entendimento que, por necessidade, deve existir em todo relacionamento saudável.
“Midsommar” não é tão aterrorizante com seus sustos quanto é provocativo com suas ideias, mas seu resultado final é uma prova do talento desigual de Ari Aster num gênero cinematográfico que costuma padecer de vozes singulares que digam algo realmente novo.

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