Numa manobra que está se tornando comum entre
realizadores recentes de filmes de terror, a nova obra de Ari Aster, diretor de
“Hereditário”, pode ser encarada como um pós-terror: Um filme onde os
expedientes do terror servem a um estudo meticuloso, inédito e por vezes
rebuscado das aflições íntimas do personagem, ao mesmo tempo que, na
auto-consciência de sua narrativa, transfigura os próprios códigos de gênero
sem, no entanto, deixar de ser terror.
É um equilíbrio delicado, difícil de ser
atingido e mantido, mas que Aster conseguiu executar com méritos em
“Hereditário”, e que repete com primor aqui.
Se é possível apontar um cerne imediatamente
perceptível na premissa de “Midsommar” diria que é o relacionamento de Dani (a
maravilhosa Florence Pugh) e Christian (Jack Reynor, de “De Repente Pai”).
Quando o filme começa, numa série criteriosa de
takes que já remetem “Hereditário”, os dois são as duas faces defeituosas de
uma mesma moeda: Um relacionamento de fissuras tão evidentes que já se prevê um
fim.
Ela lida com a própria carência e dependência.
Ele, em meio a uma roda de conversa com os amigos, delibera o provável fim do
namoro.
Uma tragédia, porém, dá novo rumo ao que parece
inevitável –numa cena onde Aster já assombra o público com sua capacidade para
evidenciar o teor poderosamente sinistro dos acontecimentos –e, ao mesmo tempo,
arremessa a trama para onde seu realizador planeja: Após um trágico episódio
pessoal, Christian já não tem condições de terminar com Dani e, em vez disso, acaba
levando-a para onde iria com seu grupo de amigos; a uma comunidade pagã na
Suécia, acompanhar os festejos de um festival que, eles esperam, serviria de
base para sua tese na faculdade.
A medida que adentram as florestas idílicas do
lugar, onde a tal Comunidade Midsommar se localiza, os personagens experimentam
um afastamento bastante nítido da civilização, de seus aborrecimentos e
desilusões (no caso de Dani), mas também, de suas certezas de segurança e suas
zonas de conforto (no caso de todo eles).
Ari Aster é um diretor extremamente perspicaz.
Na condução e na encenação, ele nos deixa observar características de seus
personagens que, se a princípio parecem adjetivos que meramente os definem
enquanto arquétipos do drama, são na verdade elementos que compõem o conceito
sobre o qual ele deseja desde o começo versar.
Está em foco o desconforto de Dani, que ela
sente, mas se esforça para ignorar. O desconforto de compreender que os amigos
de Christian (sobretudo, os dois interpretados por Will Pourter e William
Jackson Harper) a enxergam quase como uma intrusa na dinâmica de amizade que
haviam planejado; e que o próprio Christian não está, também ele, longe de ver
as coisas dessa maneira.
Quando esse grupo de protagonistas chega à
Midsommar, o desconforto passa a ser parte fundamental da construção da
narrativa (nos takes primorosos da direção de fotografia, no comentário
desestabilizador da trilha sonora, e na decisão impetuosa de fazer um filme de
terror todo à luz do dia), desta vez, não apenas o desconforto de Dani, mas
também o de todos eles, ao se darem conta de que o festival pagão que
planejavam testemunhar não é algo tão inocente quanto acreditavam.
De início, eles tentam convencer uns aos outros
de que os indícios macabros que presenciaram são reflexos condicionados deles
próprios, em resposta a uma cultura que não foram ensinados a compreender. E
embora essa percepção seja um dos tópicos de fato da narrativa, é no
protagonismo de Dani e de seu flagelo íntimo que o filme não tarda a novamente
se concentrar: Logo, os outros personagens vão sendo descartados como forma de
afunilar a premissa numa analogia à qual
voltamos à questão do relacionamento em colapso: Os olhares de Christian em
direção à outra garota; a aproximação não despida de segundas intenções de
Pelle (Vilhelm Blomgren) para junto de Dani.
São nos vinte minutos finais que “Midsommar”
mostra ao público que os indícios de que algo estava errado não eram, afinal,
apenas indícios –o que converte o conceito da comunidade pagã e dos francamente
bizarros e aterradores costumes que a norteiam numa alegoria violenta e
implacável do companheirismo e do entendimento que, por necessidade, deve
existir em todo relacionamento saudável.
“Midsommar” não é tão
aterrorizante com seus sustos quanto é provocativo com suas ideias, mas seu
resultado final é uma prova do talento desigual de Ari Aster num gênero
cinematográfico que costuma padecer de vozes singulares que digam algo
realmente novo.
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