terça-feira, 31 de março de 2020

Ônibus 174

Antes de “Tropa de Elite”, o diretor José Padilha sagrou-se no cinema brasileiro como um contundente documentarista –e muitos são os especialistas que afirmam vir daí suas maiores obras. Ao assistirmos a investigação acerca de todas as motivações, circunstâncias e mazelas sociais que levaram ao fatídico sequestro do ônibus 174 fica fácil entender porque.
Sandro do Nascimento era um anônimo, em última instância, mais um número em estatísticas desfavoráveis e lamentáveis no desigual panorama sócio-político nacional.
Antes de esclarecer com mais nitidez sua história, o filme de Padilha já mergulha no terror que ele deflagrou no dia 12 de junho de 2000, quando sequestrou um ônibus de passageiros no bairro Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Policiais e especialistas que comparecem para fornecer seus austeros depoimentos sequer tentam elaborar uma explicação para o ocorrido –ele teria tentado um assalto mal-sucedido que culminou com a tomada de reféns? Teria perpetrado uma ação desesperada, farto de sua condição social? –ninguém se atreve a concluir; no máximo, um dos consultores afirma que, uma reflexão constante na ação policial é a de que pode-se facilitar a fuga do bandido durante um assalto simplesmente para que não se construa ali uma situação bem mais complicada e caótica que envolva reféns.
Foi, entretanto, o que ocorreu com Sandro e os passageiros do 174 naquele dia.
Policiais são chamados, incluindo os bem treinados e bem orientados agentes do B.O.P.E.
Um cerco imperfeito é montado em torno do ônibus; pois, um circo midiático de repórteres e câmeras logo se forma em torno do lugar. O sequestro é transmitido na TV ao vivo, ganhando de imediato a aura de circo de horrores –e é notável nesse sentido perceber que, por essa mesma razão, o documentário de Padilha dispõe de uma vastidão de cenas gravadas, do início ao fim, de todo o sequestro, inclusive de seus momentos cruciais.
Paralelo ao sequestro, a narrativa de Padilha tenta resgatar a identidade do criminoso a fim de elucidar a forma com que sua trajetória o moldou para aquela tragédia: Ainda criança, Sandro testemunhou o assassinato à sangue frio da própria mãe. Cresceu menino de rua, vivendo completamente à margem da sociedade carioca, indo e vindo de reformatórios e casas corretivas de menores infratores. Esteve presente no Massacre da Candelária –quando vários meninos de rua que se reuniam nas dependências externas da Igreja da Candelária para ter onde dormir foram chacinados por pessoas armadas.
Na medida do possível com o material que maneja, o filme de Padilha faz um esforço admirável para se manter imparcial. Ele dá vazão às opiniões dos entrevistados, como a assistente social incumbida dos menores de rua que conheceu Sandro e que o pinta como uma vítima da sociedade, ou os vários estudiosos sociais que oferecem um quadro acadêmico e filosófico das mazelas sociais que geram indivíduos cuja única alternativa de vida termina sendo sucumbir ao crime.
Ao mesmo tempo, ouvimos o relato minucioso dos reféns –através dos quais descobrimos, mais a frente, que havia uma espécie de dissimulação dentro do ônibus na qual Sandro queria que os gritos, apelos e choros das vítimas soassem mais dramáticos do que de fato eram –e de especialistas que apontam inúmeras falhas no procedimento policial adotado pelo comandante da operação, Coronel Penteado; falhas estas que podem estarem relacionadas a um pedido feito pelo governador do Rio para que a vida do bandido fosse poupada a qualquer custo, impedindo uma execução em frente às câmeras.
Padilha testa os nervos do expectador avançando cada vez mais intensamente na circunstância do sequestro sem oferecer ao expectador o alívio de uma solução iminente; ele monta o material verídico com consciência absoluta da dilatação de tensão produzida no resultado. Mais do que Sandro, do que seus solícitos companheiros de rua, ou do que os indignados policiais, Padilha quer que nos sintamos na posição das pessoas dentro do ônibus 174, aqueles que experimentaram em primeira mão toda a tensão acarretada pela incerteza, e todo ônus gerado a partir das atitudes negligentes.
O desfecho de “Ônibus 174” é estarrecedor.
Ilustra com maestria não só as consequências trágicas provocadas pela tensão e pelo cansaço de todos os envolvidos numa situação de sequestro, mas também evidencia o escrutínio desmedido que a mídia exerceu perante o caso, deixando bastante claro ter sido também isso, um dos principais agravantes para o rumos terríveis que tudo tomou.
Este brilhante documentário de José Padilha mantém um equilíbrio impecável em suas constatações morais expondo as posturas ideológicas de muitos envolvidos (algumas francamente a favor do bandido e contra a polícia!) sem, no entanto, compactuar com nenhuma delas. Diferente da reconstuição feita em 2008, dirigida por Bruno Barreto, “Última Parada 174”, que romantizada a vida de Sandro do Nascimento numa obra discutível, tendenciosa e covarde.

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