Antes de “Tropa de Elite”, o diretor José
Padilha sagrou-se no cinema brasileiro como um contundente documentarista –e
muitos são os especialistas que afirmam vir daí suas maiores obras. Ao
assistirmos a investigação acerca de todas as motivações, circunstâncias e
mazelas sociais que levaram ao fatídico sequestro do ônibus 174 fica fácil
entender porque.
Sandro do Nascimento era um anônimo, em última
instância, mais um número em estatísticas desfavoráveis e lamentáveis no
desigual panorama sócio-político nacional.
Antes de esclarecer com mais nitidez sua
história, o filme de Padilha já mergulha no terror que ele deflagrou no dia 12
de junho de 2000, quando sequestrou um ônibus de passageiros no bairro Jardim
Botânico do Rio de Janeiro.
Policiais e especialistas que comparecem para
fornecer seus austeros depoimentos sequer tentam elaborar uma explicação para o
ocorrido –ele teria tentado um assalto mal-sucedido que culminou com a tomada
de reféns? Teria perpetrado uma ação desesperada, farto de sua condição social?
–ninguém se atreve a concluir; no máximo, um dos consultores afirma que, uma
reflexão constante na ação policial é a de que pode-se facilitar a fuga do
bandido durante um assalto simplesmente para que não se construa ali uma
situação bem mais complicada e caótica que envolva reféns.
Foi, entretanto, o que ocorreu com Sandro e os
passageiros do 174 naquele dia.
Policiais são chamados, incluindo os bem
treinados e bem orientados agentes do B.O.P.E.
Um cerco imperfeito é montado em torno do ônibus;
pois, um circo midiático de repórteres e câmeras logo se forma em torno do
lugar. O sequestro é transmitido na TV ao vivo, ganhando de imediato a aura de
circo de horrores –e é notável nesse sentido perceber que, por essa mesma
razão, o documentário de Padilha dispõe de uma vastidão de cenas gravadas, do
início ao fim, de todo o sequestro, inclusive de seus momentos cruciais.
Paralelo ao sequestro, a narrativa de Padilha
tenta resgatar a identidade do criminoso a fim de elucidar a forma com que sua
trajetória o moldou para aquela tragédia: Ainda criança, Sandro testemunhou o
assassinato à sangue frio da própria mãe. Cresceu menino de rua, vivendo
completamente à margem da sociedade carioca, indo e vindo de reformatórios e
casas corretivas de menores infratores. Esteve presente no Massacre da
Candelária –quando vários meninos de rua que se reuniam nas dependências
externas da Igreja da Candelária para ter onde dormir foram chacinados por
pessoas armadas.
Na medida do possível com o material que
maneja, o filme de Padilha faz um esforço admirável para se manter imparcial.
Ele dá vazão às opiniões dos entrevistados, como a assistente social incumbida
dos menores de rua que conheceu Sandro e que o pinta como uma vítima da
sociedade, ou os vários estudiosos sociais que oferecem um quadro acadêmico e
filosófico das mazelas sociais que geram indivíduos cuja única alternativa de
vida termina sendo sucumbir ao crime.
Ao mesmo tempo, ouvimos o relato minucioso dos
reféns –através dos quais descobrimos, mais a frente, que havia uma espécie de
dissimulação dentro do ônibus na qual Sandro queria que os gritos, apelos e
choros das vítimas soassem mais dramáticos do que de fato eram –e de
especialistas que apontam inúmeras falhas no procedimento policial adotado pelo
comandante da operação, Coronel Penteado; falhas estas que podem estarem
relacionadas a um pedido feito pelo governador do Rio para que a vida do
bandido fosse poupada a qualquer custo, impedindo uma execução em frente às
câmeras.
Padilha testa os nervos do expectador avançando
cada vez mais intensamente na circunstância do sequestro sem oferecer ao
expectador o alívio de uma solução iminente; ele monta o material verídico com
consciência absoluta da dilatação de tensão produzida no resultado. Mais do que
Sandro, do que seus solícitos companheiros de rua, ou do que os indignados
policiais, Padilha quer que nos sintamos na posição das pessoas dentro do
ônibus 174, aqueles que experimentaram em primeira mão toda a tensão acarretada
pela incerteza, e todo ônus gerado a partir das atitudes negligentes.
O desfecho de “Ônibus 174” é estarrecedor.
Ilustra com maestria não só as consequências
trágicas provocadas pela tensão e pelo cansaço de todos os envolvidos numa
situação de sequestro, mas também evidencia o escrutínio desmedido que a mídia
exerceu perante o caso, deixando bastante claro ter sido também isso, um dos
principais agravantes para o rumos terríveis que tudo tomou.
Este brilhante documentário
de José Padilha mantém um equilíbrio impecável em suas constatações morais
expondo as posturas ideológicas de muitos envolvidos (algumas francamente a
favor do bandido e contra a polícia!) sem, no entanto, compactuar com nenhuma
delas. Diferente da reconstuição feita em 2008, dirigida por Bruno Barreto,
“Última Parada 174”, que romantizada a vida de Sandro do Nascimento numa obra
discutível, tendenciosa e covarde.
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