segunda-feira, 30 de março de 2020

O Túmulo do Sol

Crítica do amigo João Antonio Machado
“As montanhas eram tão caras. O rio, outrora tão querido, seguido e perseguido neste caminho interminável. As lágrimas foram minha única companheira de viagem...”
Eis a melodia entoada dos lábios de Takeshi (Isao Sasaki), o ser mais sensível e diferenciado em todo o filme. Mas é uma exceção. Em um universo onde prevalecem a violência, o desprezo pela vida, a prostituição e a depravação moral, amalgamados num cenário devastado pela pobreza, Takeshi se dispõe a auxiliar outros membros de sua gangue, que cometeram erros e podem vir a sofrer graves consequências devido à tanto; ele dialoga com as prostitutas recém espancadas; exime-se de tramar planos que o favoreçam (um não-malandro); carrega nos ombros um pesar pelos crimes perpetrados; e sacrifica a própria vida pela de uma jovem por quem estava apaixonado.
Uma notável discrepância, não abismável, porém, todos os que estão imersos naquele têm sua parcela de contribuição. É Chika (Tanie Kitabayashi) a trair seu esposo, quando ele sai trabalhar; a jocosidade e balbúrdia de todos, logo da descoberta do suicídio de Batasuke (Kamatari Fujiwara); a violência levada a “níveis extremos”, indo desde brutais espancamentos e frios homicídios a cuspidas de peçonha verbal; é o interesse sexual de Yosematsu (Junzaburô Ban) pela própria filha, já dirigente de um comércio ilegal de sangue durante o dia e prostituta no período noturno.
Numa atmosfera envolta nos dramas da miséria (o panorama é mesmo de uma favela, perspectiva rara dentro do cinema nipônico e, em termos de senso comum brasileiro, pouco vinculada ao Japão), tudo contrasta com um ideal de esperança transmitido por uma frase de um cartaz fixado em área pública: “Vamos dar amor e um futuro a nossa juventude”.
Evidente a intenção de Nagisa Oshima em transmitir um choque de realidade no expectador de classe média. Todavia, além de toda essa crueza, aspectos técnicos peculiares podem ser destacados, pois o filme não causa um incômodo tão somente por seu conteúdo, mas igualmente pela sua construção.
Em brigas de rua, por vezes a câmera balança, envolvendo o expectador na confusão da situação; há sequências inteiras sem quaisquer cortes, com ângulos moldados somente pelo movimentar do instrumento de filmagem; mas principalmente, os cortes são bruscos e rápidos nas transições de uma sequência para outra, impedindo que o expectador se acomode ao ambiente e muito menos que a atuação no cenário seja exaurida.
Parece haver o anseio do diretor pela edificação de uma estética/estilo próprio.
E isso se nota por outro fator mais explícito: o zoom no suor e sujeira dos rostos dos personagens. Uma estética da imundície e feiura, do depravado e decadente. Os moradores da favela estão sempre maltrapilhos, com roupas rasgadas e encardidas. Já os jovens delinquentes da Shinei-Kai, comandada a mão de ferro por Shin (Masahiko Tsugawa), comumente se apresentam bem aprumados. Um destaque pode ser dado para a protagonista Hanako (Kayoko Honoo), que mesmo vivendo com os miseráveis,
jamais mostra-se em andrajos.
A anti-heroína do filme, filha de Yosematsu, se caracteriza por uma personalidade impositiva, revoltada e de coração empedernido. Com desprezo total pela vida alheia, ela expõe em palavras uma mentalidade agrilhoada ao ideal de trabalho. E é somente no ocaso da narrativa, após a morte de Takeshi com quem vinha mantendo relações, que fica perceptível o desabrochar de uma singela crise. Durante a noite, ela vai até o bar onde se reúnem os desocupados, dirige-se ao profeta sem nome (Eitarô Ozawa) que, na expectativa de melhoras, anuncia a vinda breve de uma guerra contra a URSS e lhe interpela: “Como serão as coisas? Será que vai ser melhor? Haverá vagabundos e desabrigados como esses caras? E sobre as favelas? Diga-me agora!”
Logo mais, há uma quebra de paradigma: é dado zoom nas repudiáveis faces dos homens reunidos na taverna. Se no filme todo não parece haver espaço para vitimização e os personagens são apresentados como algozes de si mesmos, neste instante isto se inverte. Suas personalidades são mostradas como padecentes de uma superestrutura.
Repleta de ódio, Hanako revela aos demais a fonte de renda do profeta, seu antigo parceiro no comércio de sangue: A compra (por valores irrisórios) de certidões de nascimento dos habitantes locais, para venda a imigrantes ilegais. Todos se rebelam e iniciam um incêndio na casa do agoureiro. A protagonista aproveita a ocasião e incentiva a queima da casa de seu pai. A baderna encerra com o profeta detonando uma velha granada.
Chega a curta e última cena: é alvorada, Hanako e Murata (um soldado veterano e atual mendigo aparentemente enlouquecido) observam o resultado das labaredas. Ele diz: “É como quando a guerra acabou...”
Ela o segura pelo braço e o arrasta correndo (Para onde? Em que direção? Com quais planos?), no que o pedinte comenta: “Sim, temos muito trabalho a fazer”.
Na película toda nenhum camelo, ou quase isso. Um “sim” à força destruidora do leão. E o anúncio retumbante de criança por nascer.
É aurora! Não mais os planos do sol poente, antecedidos em primeiro plano pelos contornos e sombras de um cenário industrial ou de um imponente castelo. As portas não estão abertas a nestes ilusoriamente aparentes “pillow-shots”. Pois consonante a eles emerge o harmonioso e tranquilo tocar de cordas, mui semelhante ao nosso violão caipira. É aurora!

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