quarta-feira, 15 de abril de 2020

Uma Mulher Para Dois

O título nacional de “Mad Dog And Glory” periga confundi-lo na percepção de alguns cinéfilos –ou pretendentes a cinéfilos –com o clássico “Jules e Jim-Uma Mulher Para Dois”, de François Truffaut.
Esta, na verdade, é uma comédia dos anos 1990 que sofre constante ameaça de ser esquecida pelo tempo, como tantas outras obras.
No final dos anos 1980, tendo roteirizado o aclamado “A Cor do Dinheiro” e o sucesso “Vítimas de Uma Paixão”, o escritor Richard Pryce estava com a bola toda, logo, não tardou a fazer o mesmo que todos os artistas que veem o próprio ego ser inflamado por uma boa maré de sorte: Imaginou-se um autor.
O produto desse momento de vaidade é “Mad Dog And Glory”, sobretudo, porque nele se identificam maneirismos de um roteirista que tateia as convenções à procura dos momentos chavões do gênero para neles incutir um refinamento inesperado e uma personalidade tida por singular. Por conta disso, o filme que supostamente seria uma comédia não é, veja só, assim tão engraçado... o que deveria ser um romance não mergulha tanto dos dilemas dos enamorados quanto dá a entender e... se havia intenção na premissa de Pryce de abarcar algum outro gênero, nada nele sugere tal coisa.
O que sobra são méritos que acabam atribuídos a outras presenças do filme –e que, às vezes, podem até resultar de algum acaso!
Robert De Niro vive o policial Wayne Dobie, a quem os amigos apelidaram (sabe-se lá porque!) de Mad Dog –nada em seu comportamento submisso e inerte faz lembrar um ‘Cão Raivoso’; aliás, nada nele faz lembrar outros personagens da galeria de Robert De Niro.
Ao presenciar um assalto casual, Wayne acaba conhecendo o gangster Frank Milo, vivido magnificamente por Bill Murray.
E leva até um certo tempo para nos darmos conta da descomunal ironia de colocar Bill Murray interpretando um mafioso diante de Robert De Niro: Pareceria um tremendo engano dos diretores de casting se o talento dos intérpretes não tornasse tudo imediatamente convincente, e se, em sua espirituosidade, isso já não fizesse parte da brincadeira proposta pelo diretor John McNaughton.
Frank, por sinal, é um gangster pouco usual. É ameaçador e controlador, mas deseja levar divertimento aos outros como comediante de stand up e, apesar da rudeza de seus instintos iniciais, ele intenciona fazer amizade com Wayne.
Todavia, na sua atitude gangster truculenta, a amizade de Frank já alicia certos aspectos da vida de Wayne: Ele despacha para morar com ele por uma semana a garçonete Glory (Uma Thurman, jovem e linda), na intenção de fazer com que a beldade proporcione um pouco de satisfação à sua vida solitária.
Glory tem uma dívida para com Frank, e morre de medo dele, logo, ela insiste para Wayne que, se não tem muita disposição em manter uma amizade com Frank (afinal, ele é tira, Frank é mafioso), ao menos finga estar contente com a presença dela para não deixá-la em maus lençóis.
Assim, muito na galhofa, oscilando entre a leveza de um possível romance e a pretensão de ser todo original, o roteiro de Pryce vai moldando as situações que se seguem. Ele contou, é bem verdade, com a sorte de ter um diretor como McNaughton, perito em tornar qualquer andamento envolvente.
Saído das fileiras de obras independentes com o admirável e tenso cult-movie “Henry-Retrato de Um Assassino”, McNaughton realizou esta espécie de comédia dramática, um surpreendente salto de estilo ao assumir uma produção comercial, não só mudando radicalmente de tom, abordagem e gênero, mas provando versatilidade ao saber lidar com um material tão diferente –e ele voltaria a fazer novamente, anos depois, ao realizar o noir erótico “Garotas Selvagens”.
Escorregadio como era, o roteiro de Pryce poderia representar uma armadilha para qualquer diretor menos capaz, nas mãos de McNaughton é um romance inconstante, porém, ameno e simpático que se sustenta até o fim, e tem o mérito inconteste de revelar uma faceta mais sombria e de magnífico humor negro em Bill Murray (disparado a melhor presença de todo o elenco), a juventude sensual e palpitante de Uma Thurman antes de “Pulp Fiction”, e um lado mais sensível, de ator romântico, em Robert De Niro –se bem que, nesse quesito, ele fica um pouco a dever...

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