segunda-feira, 18 de maio de 2020

Dezesseis Zero Sessenta

Em tempos da consagração (merecida) do sul-coreano “Parasita” junto ao Oscar, vale a pena desenterrar a memória de um filme brasileiro cuja premissa lança mão de elementos muito assim parecidos.
Como na obra-prima de Bong Joon-Ho, esta fábula intransigente de humor negro a análise antropológica justapõe a luta de classes de maneira tão atordoante quanto literal –levando ricos e pobres a co-existir debaixo de um mesmo teto; e ilustrando, por meio disso, as incompatibilidades que sempre determinarão suas rupturas.
Flagrado no requinte de seu lar, o empresário Vittorio (Antonio Calloni) tem uma bela esposa, Eleanor (Maitê Proença), uma mansão chique e luxuosa, e um estilo de vida confortável.
Na forma certamente das invejas alheias, um ladrão invade sua residência e, embora preso pela polícia, é levado prometendo vingança. Tal ideia tira o sono de Vittorio a ponto dele encomendar o assassinato do criminoso na cadeia onde foi colocado.
Contudo, as coisas saem errado, e o presidiário errado acaba sendo morto.
Triturado pela culpa, Vittorio tem uma atitude inusitada: Chama para morar em sua mansão a viúva (Marcelia Cartaxo) e os três filhos do assassinado.
É a partir daqui que o filme dirigido por Vinicius Mainardi (e roteirizado por ele e por seu irmão, Diogo Mainardi) passa a encenar os conflitos simultâneos originados de dois estilos de vivência cultural, financeira e existencial quando estes se chocam em função da divisão condicionada de um mesmo (e limitado) espaço: As crianças faveladas são mais barulhentas do que o pimpolho rico, mesmo os castigos impostos pelo ocasional bom senso da mãe soam ainda mais caóticos aos olhos dos anfitriões; Eleanor não entende as razões para o marido ter recolhido em casa pessoas que ele próprio julga cada vez mais inconvenientes, e enxerga as crianças pobres com curiosidade exótica, nunca com empatia –o atraso comportamental, social e intelectual da caçula, o olhar faminto que um dos garotos dirige aos pratos da casa, o menino que fica a desmontar os eletrodomésticos para entender seu funcionamento –e o filho dos ricos é tendenciosamente orgulhoso da arma que ganhou coniventemente do pai, mas, sua valentia só dura enquanto tem o amparo da mãe.
Filmado num preto & branco indicativo dos contrastes conscientes e subconscientes embutidos na situação que centraliza (fator que também ajuda a distingui-lo das produções definidas por carências e limitações de ordem especialmente visual do período), o filme dos irmãos Mainardi expõe um tema que parecia surtir muito interesse aos autores da Retomada (também aborda esse conflito de classes o emblemático “Como Nascem Os Anjos”) e reflete a postura extremamente crítica de seu realizadores em relação à cultura brasileira, inclusive a forma com que a própria (e seus representantes) se põe perante outras culturas (leia-se, norte-americana) com pressuposta inferioridade.
Agressivo, árido, impiedoso e dotado de gradual acidez para com as diferentes atitudes de seus personagens, “Dezesseis Zero Sessenta” –ou “16060” título que representa a numerologia de importância na vida do protagonista –é incisivamente debochado onde outros realizadores enxergariam oportunidade para ser conciliatório e moralista.
Seu desfecho, longe de trazer qualquer resolução, só enfatiza sua ironia potencialmente alegórica deixando Vittorio ao léu cercado dos elementos que definiam seu status, e despido, no entanto, dos elementos que a ele conferiam vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário