Desde os anos 1960, Os Trapalhões entregavam
obras cinematográficas com relativa frequência e considerável êxito. Demorou
muitos exemplares, contudo, para que a fórmula do sucesso e, sobretudo, a
formação clássica do grupo estivesse completamente constituída: Embora seja o
décimo filme dentro de seus moldes, “Cinderelo Trapalhão” é tão somente o
segundo no qual toda a grupe é reunida em toda sua glória –entretanto, não
restam dúvidas de que seja o primeiro onde a mistura finalmente funciona; o
projeto anterior, que registra a primeira reunião em cinema de Didi, Dedé,
Mussum e Zacarias, é o pavoroso e tosco “Os Trapalhões na Guerra dos Planetas”.
Lançado em 1979, “Cinderelo Trapalhão”, como o
próprio título já deixa claro, versa sobre o clássico conto de fadas de
“Cinderela”, e é bastante divertido acompanhar a forma como o roteiro (escrito
por Renato Aragão, Carlos Alberto de Nóbrega, Gilberto Garcia e Wilson Vaz) e a
direção (a cargo de Adriano Stuart) integram os elementos que compõem a
história famosa ao estilo de humor malandro e pastelão do quarteto.
É Didi, ou melhor, Renato Aragão, quem
interpreta o personagem-título Cinderelo, um rapaz pobre, sujo e atrapalhado,
enjeitado até mesmo pelos amigos com os quais anda, os altivos cavaleiros Dedé,
Mussum e Zacarias –que aqui interpretam protagonistas valentes e bons de briga,
num contraste com os covardes desastrados que normalmente vivem nos demais
filmes.
O vilão da trama, um certo Coronel Dourado
(Francisco Dantas), é proprietário de amplas terras na cidadezinha local –como
bem esclarece a narrativa em off no início, já evocando uma paródia de contos
de fadas –mas, isso não lhe basta. As terras que ele de fato deseja, e que
suspeita conterem petróleo, foram deixadas por seu falecido proprietário como
herança para uma família pobre que só quer construir uma igreja no local.
Tal família, composta por Davi (o galã Paulo
Ramos), seu irmão Paulo (Maurício do Valle), e mais uma meia dúzia de
figurantes sem expressão –incluindo uma ainda jovem Christina Rocha, hoje mais
conhecida como apresentadora do infame programa “Casos de Família”, do SBT
–quando chegam ao lugar são hostilizados pelos capangas do Coronel, que
pretende passar por cima de qualquer direito ou lei e tomar a propriedade para si.
Não há, como se pode perceber, qualquer
sutileza no retrato dos maus opressores e dos bons oprimidos.
A família de Davi, assim, precisa pedir ajuda
aos valentões locais, Dedé, Mussum e Zacarias, que aceitam a tarefa em troca de
um pedaço de terra para morar –já Didi, isto é, Cinderelo, precisa provar
alguma valentia para então ser aceito entre os supostos heróis.
Dessa forma, Cinderelo desafia um touro durante
uma hilária tourada (numa alusão à Cantinflas) para, logo depois, se infiltrar
na fazenda do Coronel promovendo as bagunças de praxe que sempre caracterizaram
o humor de Renato Aragão, onde ele é o personagem humilde que prevalece sobre
os fortões enferruscados valendo-se de ingênua malandragem –uma de suas vítimas
prediletas (neste filme, em outros, e até em seu programa televisivo) é o ator
Carlos Kurt, intérprete de Souza, o líder dos capangas.
Assim, Cinderelo e os outros organizam um plano
para tirar do Coronel seu arsenal de armas, justamente o que garante a ele e a
seus homens o controle da região: Primeiro, tentam colocar todos para dormir
durante uma festa onde põem sonífero no refresco –o que dá errado!
Depois, num plano mais elaborado e já com a
cumplicidade da sobrinha do Coronel, Ivete (a gatinha Sílvia Salgado), resolvem
disfarçar Cinderelo como um príncipe do oriente, interessado em casar-se com
Ivete –uma espécie de sonho do Coronel. Assim, durante a cerimônia, todos
estariam distraídos o suficiente para que o restante do grupo levasse as armas.
Ironicamente, um príncipe de verdade (Hélio
Souto) entra em contato dizendo que chegará à cidade ao meio-dia para desposar
Ivete, complicando os planos dos protagonistas. Repare na cara de pau da
analogia do filme: Cinderela tinha de partir do baile à meia-noite quando a
magia acabaria; o Cinderelo de Renato Aragão tem de fazer todo seu embuste com
a hora-limite sendo meio-dia, antes que o príncipe real apareça para frustrar
seus planos.
Também o detalhe do sapatinho de cristal não
foi esquecido: Só que, desta vez, é uma botina (!) que o falso príncipe deixa
para trás em sua bagunçada fuga. E, portanto, será a botina que os capangas do
vilão irão experimentar em todos os homens da localidade até encontrar seu
culpado.
Bastante engraçado, desde
que o expectador leve em conta o humor deliberadamente ingênuo, e os elementos
provincianos de sua época e sua ambientação, “Cinderelo Trapalhão” já
apresentava algumas características que seriam inerentes aos filmes do quarteto
nos anos 1980 e 90, e que levariam a um certo desgaste, especialmente, no que tange
ao controle criativo cada vez mais opressor de Renato Aragão, refletido numa
ênfase de importância em seu personagem junto à narrativa em detrimento dos
demais trapalhões –que com frequência eram até mais engraçados do que ele! No
entanto, “Cinderelo Trapalhão” é também um trabalho dotado de graça plena e
genuína, um ritmo admirável despido de sequências musicais que embotariam
outras realizações deles no futuro e cheio de piadas saborosas que ainda hoje rendem
boas risadas, como a cena em que Dedé, Mussum e Zacarias praticam tiro ao alvo
em garrafas enquanto Cinderelo lhes presta um auxílio acertando-as com um
estilingue; a guerra de tortas na qual se transforma a cena do casamento
frustrado, e muitas outras.
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