domingo, 7 de junho de 2020

Cinderelo Trapalhão

Desde os anos 1960, Os Trapalhões entregavam obras cinematográficas com relativa frequência e considerável êxito. Demorou muitos exemplares, contudo, para que a fórmula do sucesso e, sobretudo, a formação clássica do grupo estivesse completamente constituída: Embora seja o décimo filme dentro de seus moldes, “Cinderelo Trapalhão” é tão somente o segundo no qual toda a grupe é reunida em toda sua glória –entretanto, não restam dúvidas de que seja o primeiro onde a mistura finalmente funciona; o projeto anterior, que registra a primeira reunião em cinema de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, é o pavoroso e tosco “Os Trapalhões na Guerra dos Planetas”.
Lançado em 1979, “Cinderelo Trapalhão”, como o próprio título já deixa claro, versa sobre o clássico conto de fadas de “Cinderela”, e é bastante divertido acompanhar a forma como o roteiro (escrito por Renato Aragão, Carlos Alberto de Nóbrega, Gilberto Garcia e Wilson Vaz) e a direção (a cargo de Adriano Stuart) integram os elementos que compõem a história famosa ao estilo de humor malandro e pastelão do quarteto.
É Didi, ou melhor, Renato Aragão, quem interpreta o personagem-título Cinderelo, um rapaz pobre, sujo e atrapalhado, enjeitado até mesmo pelos amigos com os quais anda, os altivos cavaleiros Dedé, Mussum e Zacarias –que aqui interpretam protagonistas valentes e bons de briga, num contraste com os covardes desastrados que normalmente vivem nos demais filmes.
O vilão da trama, um certo Coronel Dourado (Francisco Dantas), é proprietário de amplas terras na cidadezinha local –como bem esclarece a narrativa em off no início, já evocando uma paródia de contos de fadas –mas, isso não lhe basta. As terras que ele de fato deseja, e que suspeita conterem petróleo, foram deixadas por seu falecido proprietário como herança para uma família pobre que só quer construir uma igreja no local.
Tal família, composta por Davi (o galã Paulo Ramos), seu irmão Paulo (Maurício do Valle), e mais uma meia dúzia de figurantes sem expressão –incluindo uma ainda jovem Christina Rocha, hoje mais conhecida como apresentadora do infame programa “Casos de Família”, do SBT –quando chegam ao lugar são hostilizados pelos capangas do Coronel, que pretende passar por cima de qualquer direito ou lei e tomar a propriedade para si.
Não há, como se pode perceber, qualquer sutileza no retrato dos maus opressores e dos bons oprimidos.
A família de Davi, assim, precisa pedir ajuda aos valentões locais, Dedé, Mussum e Zacarias, que aceitam a tarefa em troca de um pedaço de terra para morar –já Didi, isto é, Cinderelo, precisa provar alguma valentia para então ser aceito entre os supostos heróis.
Dessa forma, Cinderelo desafia um touro durante uma hilária tourada (numa alusão à Cantinflas) para, logo depois, se infiltrar na fazenda do Coronel promovendo as bagunças de praxe que sempre caracterizaram o humor de Renato Aragão, onde ele é o personagem humilde que prevalece sobre os fortões enferruscados valendo-se de ingênua malandragem –uma de suas vítimas prediletas (neste filme, em outros, e até em seu programa televisivo) é o ator Carlos Kurt, intérprete de Souza, o líder dos capangas.
Assim, Cinderelo e os outros organizam um plano para tirar do Coronel seu arsenal de armas, justamente o que garante a ele e a seus homens o controle da região: Primeiro, tentam colocar todos para dormir durante uma festa onde põem sonífero no refresco –o que dá errado!
Depois, num plano mais elaborado e já com a cumplicidade da sobrinha do Coronel, Ivete (a gatinha Sílvia Salgado), resolvem disfarçar Cinderelo como um príncipe do oriente, interessado em casar-se com Ivete –uma espécie de sonho do Coronel. Assim, durante a cerimônia, todos estariam distraídos o suficiente para que o restante do grupo levasse as armas.
Ironicamente, um príncipe de verdade (Hélio Souto) entra em contato dizendo que chegará à cidade ao meio-dia para desposar Ivete, complicando os planos dos protagonistas. Repare na cara de pau da analogia do filme: Cinderela tinha de partir do baile à meia-noite quando a magia acabaria; o Cinderelo de Renato Aragão tem de fazer todo seu embuste com a hora-limite sendo meio-dia, antes que o príncipe real apareça para frustrar seus planos.
Também o detalhe do sapatinho de cristal não foi esquecido: Só que, desta vez, é uma botina (!) que o falso príncipe deixa para trás em sua bagunçada fuga. E, portanto, será a botina que os capangas do vilão irão experimentar em todos os homens da localidade até encontrar seu culpado.
Bastante engraçado, desde que o expectador leve em conta o humor deliberadamente ingênuo, e os elementos provincianos de sua época e sua ambientação, “Cinderelo Trapalhão” já apresentava algumas características que seriam inerentes aos filmes do quarteto nos anos 1980 e 90, e que levariam a um certo desgaste, especialmente, no que tange ao controle criativo cada vez mais opressor de Renato Aragão, refletido numa ênfase de importância em seu personagem junto à narrativa em detrimento dos demais trapalhões –que com frequência eram até mais engraçados do que ele! No entanto, “Cinderelo Trapalhão” é também um trabalho dotado de graça plena e genuína, um ritmo admirável despido de sequências musicais que embotariam outras realizações deles no futuro e cheio de piadas saborosas que ainda hoje rendem boas risadas, como a cena em que Dedé, Mussum e Zacarias praticam tiro ao alvo em garrafas enquanto Cinderelo lhes presta um auxílio acertando-as com um estilingue; a guerra de tortas na qual se transforma a cena do casamento frustrado, e muitas outras.

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