O travelling de câmera que abre “A Dama Oculta”
oferece uma perfeita amostra do brilhantismo técnico do qual Alfred Hitchcock
já gozava neste glorioso trecho final de sua fase britânica, ainda ocasionado
de alguns maneirismos do cinema mudo –não muito depois, ele seria importado aos
EUA, onde seguiria uma carreira pontuada por aprimoramentos técnicos e
estéticos ainda mais notáveis do que aqueles que ele iniciou na Inglaterra.
Hitchcock demanda algum tempo de filme até
centralizar de fato seus protagonistas e elaborar com evidência sua premissa:
Antes disso, ele se ocupa de uma quantia generosa de personagens instalados nas
dependências de um gelado hotel no país fictício de Bandrika, onde todos foram
obrigados a ficar devido à uma avalanche que soterrou temporariamente os
trilhos do trem.
Lá, entre outros, nos são apresentados
personagens como os dois ingleses Charters e Caldicott (Basil Radford e Nauton
Wayne), dupla mais interessada nos resultados dos jogos de críquete de seu
país-natal do que qualquer outra coisa, avessos à cordialidade para com outros
ao seu redor e, no registro sarcasticamente caricato de sua homossexualidade,
completamente estarrecidos com a circunstância que leva a desprendida empregada
do lugar à trocar de roupas na frente deles (!) –e de nada adiantam seus
protestos visto que ela sequer compreende seu idioma.
Esse início, definido por certa galhofa, flagra
algumas audácias da parte de seu diretor que mostram o quão “A Dama Oculta”
deve ter sido uma obra transgressora em seu tempo, viés esse que dissipou-se
conforme a passagem dos anos lhe conferiu sua inevitável aura clássica: Além da
desinibida empregada estrangeira, há também a cena em que a noiva Iris
Henderson (Margaret Lockwood) e suas duas amigas surgem em seu quarto, com
camisolas e as pernas de fora (o que, naquele 1938, correspondia à uma cena de
nudez!) chocando o garçom do hotel que vai levar-lhes o desjejum, e o trecho
ocorrido pouco depois quando a própria Iris queixa-se do barulho do morador do
quarto acima do seu, o músico Gilbert (Michael Redgrave, de “Os Inocentes”),
levando-o a ser despejado. Atrevido, Gilbert invade o quarto dela de madrugada,
ameaçando tomar banho em seu banheiro (!) e dormir com ela em sua cama (!!),
caso não retire as queixas junto à gerência.
Após esse entrecho de comédia desengonçada e
contextualização intuitiva (incluindo uma curiosa cena onde um menestrel é
assassinado, logo deixada totalmente de lado pela narrativa), a trama do filme
engrena de fato na manhã seguinte, quanto todos os hóspedes enfim partem no
trem.
Iris –que passa então a ser enfatizada como a
heroína do filme –na falta de suas duas amigas que dela se despediram na
estação, faz amizade com a afável Sra. Froy (May Whitty) depois que ela a ajuda
quando sobre um acidente e bate com a cabeça.
A bordo do trem –cenário restrito que as
câmeras de Hitchcock irão explorar com insuspeito virtuosismo –a relação entre
Iris e a Sra. Froy se constrói harmoniosamente, entre rituais tipicamente
britânicos como a hora do chá e o descanso da tarde, até que a velha senhora
simplesmente desaparece.
Perplexa com o sumiço, Iris passa a perguntar
por ela a todos os passageiros do trem, contudo, ninguém lembra de tê-la visto
–logo, surge a teoria de que tudo não passou de uma alucinação de Iris
provocada pela batida em sua cabeça.
Iris, entretanto, está convencida de que, por
alguma razão, a Sra. Froy foi sequestrada e que muitos dos passageiros estão
envolvidos numa conspiração para acobertar tal fato –ironicamente (e ironia é
uma das especialidades de Hitchcock), o único a acreditar nela e a ajudá-la é
justamente o inconveniente desafeto da noite anterior, Gilbert que, com bom
humor e desenvoltura, tenta investigar o desaparecimento da velhinha; afinal,
estando eles em um trem não existem outros lugares aonde ela possa estar a não
ser à bordo.
Amparado numa trama que representa uma pérola
da objetividade e da precisão cirúrgica no manejo do suspense, Hitchcock
justapõe seus personagens principais às pistas (falsas ou legítimas), e
converte o ponto de vista, à partir daí, num tratado da subjetividade: Se no
prólogo prolongado, diversos coadjuvantes foram visitados com propósitos
nebulosos, neste restante de filme, é a aflição de Iris e o empenho solícito de
Gilbert (sem dúvida, um casal em gestação) que ocupa todo o centro da
narrativa, os demais personagens surgem como referências da aparição da Sra.
Froy –e a medida que todos vão negando o testemunho da existência dela (por
diversas e, às vezes, egoístas razões), eles vão, por consequência,
corroborando a insanidade de Iris, dando corda ao plano obscuro do vilão Dr.
Hartz (Paul Lukas).
Admirável na construção
sempre primorosa de sua ambientação (surpreende a informação de que o trem, o
tempo todo convincente e detalhado, seja uma recriação de estúdio), e
inspiradíssimo nos elementos diversos de sua história (entram em pauta pequenas
observações acerca na natureza de seus personagens, como o iminente casamento
de Iris e outras minúcias), “A Dama Oculta” encapsula com louvável
inventividade um conceito de filme de espionagem (pois, no final de contas, é
isso que ele realmente é) numa trama algo claustrofóbica e palpitante sobre
mentiras, verdades, omissões e dúvidas corrosivas.
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