sábado, 1 de agosto de 2020

A Dama Oculta

O travelling de câmera que abre “A Dama Oculta” oferece uma perfeita amostra do brilhantismo técnico do qual Alfred Hitchcock já gozava neste glorioso trecho final de sua fase britânica, ainda ocasionado de alguns maneirismos do cinema mudo –não muito depois, ele seria importado aos EUA, onde seguiria uma carreira pontuada por aprimoramentos técnicos e estéticos ainda mais notáveis do que aqueles que ele iniciou na Inglaterra.
Hitchcock demanda algum tempo de filme até centralizar de fato seus protagonistas e elaborar com evidência sua premissa: Antes disso, ele se ocupa de uma quantia generosa de personagens instalados nas dependências de um gelado hotel no país fictício de Bandrika, onde todos foram obrigados a ficar devido à uma avalanche que soterrou temporariamente os trilhos do trem.
Lá, entre outros, nos são apresentados personagens como os dois ingleses Charters e Caldicott (Basil Radford e Nauton Wayne), dupla mais interessada nos resultados dos jogos de críquete de seu país-natal do que qualquer outra coisa, avessos à cordialidade para com outros ao seu redor e, no registro sarcasticamente caricato de sua homossexualidade, completamente estarrecidos com a circunstância que leva a desprendida empregada do lugar à trocar de roupas na frente deles (!) –e de nada adiantam seus protestos visto que ela sequer compreende seu idioma.
Esse início, definido por certa galhofa, flagra algumas audácias da parte de seu diretor que mostram o quão “A Dama Oculta” deve ter sido uma obra transgressora em seu tempo, viés esse que dissipou-se conforme a passagem dos anos lhe conferiu sua inevitável aura clássica: Além da desinibida empregada estrangeira, há também a cena em que a noiva Iris Henderson (Margaret Lockwood) e suas duas amigas surgem em seu quarto, com camisolas e as pernas de fora (o que, naquele 1938, correspondia à uma cena de nudez!) chocando o garçom do hotel que vai levar-lhes o desjejum, e o trecho ocorrido pouco depois quando a própria Iris queixa-se do barulho do morador do quarto acima do seu, o músico Gilbert (Michael Redgrave, de “Os Inocentes”), levando-o a ser despejado. Atrevido, Gilbert invade o quarto dela de madrugada, ameaçando tomar banho em seu banheiro (!) e dormir com ela em sua cama (!!), caso não retire as queixas junto à gerência.
Após esse entrecho de comédia desengonçada e contextualização intuitiva (incluindo uma curiosa cena onde um menestrel é assassinado, logo deixada totalmente de lado pela narrativa), a trama do filme engrena de fato na manhã seguinte, quanto todos os hóspedes enfim partem no trem.
Iris –que passa então a ser enfatizada como a heroína do filme –na falta de suas duas amigas que dela se despediram na estação, faz amizade com a afável Sra. Froy (May Whitty) depois que ela a ajuda quando sobre um acidente e bate com a cabeça.
A bordo do trem –cenário restrito que as câmeras de Hitchcock irão explorar com insuspeito virtuosismo –a relação entre Iris e a Sra. Froy se constrói harmoniosamente, entre rituais tipicamente britânicos como a hora do chá e o descanso da tarde, até que a velha senhora simplesmente desaparece.
Perplexa com o sumiço, Iris passa a perguntar por ela a todos os passageiros do trem, contudo, ninguém lembra de tê-la visto –logo, surge a teoria de que tudo não passou de uma alucinação de Iris provocada pela batida em sua cabeça.
Iris, entretanto, está convencida de que, por alguma razão, a Sra. Froy foi sequestrada e que muitos dos passageiros estão envolvidos numa conspiração para acobertar tal fato –ironicamente (e ironia é uma das especialidades de Hitchcock), o único a acreditar nela e a ajudá-la é justamente o inconveniente desafeto da noite anterior, Gilbert que, com bom humor e desenvoltura, tenta investigar o desaparecimento da velhinha; afinal, estando eles em um trem não existem outros lugares aonde ela possa estar a não ser à bordo.
Amparado numa trama que representa uma pérola da objetividade e da precisão cirúrgica no manejo do suspense, Hitchcock justapõe seus personagens principais às pistas (falsas ou legítimas), e converte o ponto de vista, à partir daí, num tratado da subjetividade: Se no prólogo prolongado, diversos coadjuvantes foram visitados com propósitos nebulosos, neste restante de filme, é a aflição de Iris e o empenho solícito de Gilbert (sem dúvida, um casal em gestação) que ocupa todo o centro da narrativa, os demais personagens surgem como referências da aparição da Sra. Froy –e a medida que todos vão negando o testemunho da existência dela (por diversas e, às vezes, egoístas razões), eles vão, por consequência, corroborando a insanidade de Iris, dando corda ao plano obscuro do vilão Dr. Hartz (Paul Lukas).
Admirável na construção sempre primorosa de sua ambientação (surpreende a informação de que o trem, o tempo todo convincente e detalhado, seja uma recriação de estúdio), e inspiradíssimo nos elementos diversos de sua história (entram em pauta pequenas observações acerca na natureza de seus personagens, como o iminente casamento de Iris e outras minúcias), “A Dama Oculta” encapsula com louvável inventividade um conceito de filme de espionagem (pois, no final de contas, é isso que ele realmente é) numa trama algo claustrofóbica e palpitante sobre mentiras, verdades, omissões e dúvidas corrosivas.

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