domingo, 2 de agosto de 2020

Nó Na Garganta

Dos mais contundentes filmes sobre a gênese do mal, “Nó Na Garganta”, que Neil Jordan adaptou do romance de Patrick McCabe, junto do próprio autor, é um atestado à habilidade inconteste e essencial de seu realizador. Veterano dos mais diversificados projetos –filmes de artes autorais (“Mona Lisa”); obras consagradas de temática audaciosa (“Traídos Pelo Desejo”); projetos de forte apelo comercial (“Entrevista Com O Vampiro”); realizações de orientação clássica (“Fim de Caso”); produções independentes (“Byzantium”) –o irlandês Neil Jordan regressou ao âmago de sua Irlanda natal para perpetrar a história de adversidade, infortúnio e violência do jovem Francie Brady, interpretado do início ao fim pelo estreante Eamonn Owens com expressividade retumbante e energia inesgotável.
Garoto largado ao léu nas ruas de Dublin dos anos 1960, Francie vinha de uma família ela própria problemática: O pai, um músico alcoólatra (Stephen Rea), era violento com a esposa e negligente com o filho; a mãe (Aisling O’Sullivan), em função da mal-fadada vida doméstica, afundava em lapsos maníaco-depressivos que terminaram, por fim, fulminando-a.
Certamente uma criança difícil, Francie expressava o abandono familiar em traquinagens que rapidamente evoluíram para atos delinquentes, o único amparo que experimentava vinha da amizade com o pequeno Joe (Alan Boyle), o único indivíduo tolerante de sua comunidade, na qual a presença mais antagônica e implicante era a Sra. Nugent (Fiona Shaw, de “Meu Pé Esquerdo” e “Harry Potter e A Pedra Filosofal”), sempre insistente em chamá-lo de porco –o eufemismo supremo aplicado ao filme.
Após a morte da mãe, Francie é despachado para o mesmo internato onde ela esteve na infância, ficando aos cuidados do Padre Bubbles (Brendan Gleeson). Lá, entre os severos trabalhos braçais e as inadequadas bolinações pedófilas de um dos padres, Francie vale-se de sua malandragem para driblar os revezes: Conta que teve no campo, uma visão de Nsa. Senhora. Todavia, por força de sugestão, de loucura inerente ou de milagre de fato, ele realmente acaba tendo tal visão (que surge interpretada pela cantora Sinead O’Connor).
Francie regressa para casa depois que esfaqueia o pescoço do padre com uma faca durante uma das sessões de abuso –incidente que é acobertado mandando-o embora –porém, os infortúnios só se intensificam: Joe, seu grande amigo, tornou-se amigo do filho da Sra. Nugent, com quem passou a estudar num colégio interno; seu pai morre pouco depois dele arrumar emprego no açougue local (“The Butcher Boy”, título original do filme e de uma música de Tommy Makem tocada numa cena), e todos esses contratempos, ao mesmo tempo que o confrontam com um beco sem saída de abandono, parecem também relacionados à influência da Sra. Nugent na comunidade.
Quando a tragédia chocante acarretada por Francie é por fim realizada, ela se dá com naturalidade e até com certa justificativa da parte dele.
Lançado nos anos 1990, “Nó Na Garganta” figurou –ao lado, talvez, de “Almas Gêmeas”, de Peter Jackson e de “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick –como uma obra que pegou crítica e público desprevenidos pela forma desconcertante com que abordou os caminhos muito humanos e sórdidos pelos quais a psicose encontra meios de se moldar.
Neil Jordan jamais cede ao convencionalismo em seu filme: Ao mesmo tempo em que enreda a trajetória de Francis num ritmo fluente e ininterrupto (reflexo do espírito inicialmente travesso do protagonista), ele evita sentimentalismos melodramáticos e demasiada seriedade albergando à narrativa um humor feroz e depreciativo, talvez, característico das províncias irlandesas onde cresceu.
O resultado de tudo isso é um filme incomum, inconformista, incapaz de tratar seu personagem principal e os coadjuvantes que o orbitam com rótulos pré-definidos de obras anteriores a tratar sobre o mesmo tema. Por tal originalidade e ousadia, o filme de Jordan, em sua época, foi ignorado e incompreendido por plateias que nele viram uma comédia de humor negro, excessiva em seu escárnio e deboche. O tempo provou a competência e brilhantismo de Jordan na corajosa concepção de seu trabalho: “Nó Na Garganta” é, sim, um dos mais vívidos, pertinentes e circunspectos registros de como o meio interfere na índole, gerando indivíduos tão indiferentes à barbárie quanto foram outros ao seu próprio sofrimento.

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