quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Bicho de Sete Cabeças

Duas foram as bases literárias para o elogiado trabalho da diretora Laís Bodanzki: O primeiro, e certamente mais evidente, foi o livro brutalmente auto-biográfico de Austregésilo Carrano, “O Canto dos Malditos”, cujo teor acomodava uma crítica incisiva e contundente ao descaso e a precariedade do sistema manicomial brasileiro de então (ele passou por clínicas psiquiátricas durante os anos 1970); e o segundo, já bem mais sutil, tratava-se da obra “Carta Ao Pai”, de Franz Kafka, livro no qual –tal como este filme –sempre esteve em pauta a relação cheia de rancores entre pai (aqui vivido por Othon Bastos) e filho (Rodrigo Santoro, em grande atuação).
Seus personagens estão em conflito desde o princípio, por questões inerentes a qualquer choque de gerações, entretanto, é provavelmente a falta abissal de diálogo que leva Neto a ser internado, pelo próprio pai, numa clínica psiquiátrica: Ele encontra um baseado de maconha no bolso da jaqueta do filho e daí para julgá-lo viciado é um pulo.
A clínica promete uma desintoxicação garantida, mas não é bem assim: Na realidade desumana dos hospitais psiquiátricos de então, Neto é engolido por um sistema que transfigura seus pacientes em indivíduos ainda mais defeituosos do que quando entraram.
O médico da clínica (Altair Lima) só está interessado nos repasses monetários do governo, o que ele não terá se não tiver pacientes internados: A recuperação de seus internos é, portanto, a última de suas preocupações; na verdade, quando mais internos a clínica tiver (e não pacientes curados, veja bem!), mais garantido será de que o financiamento do governo venha.
Sendo assim, não interessa a ninguém ali qualquer recuperação de Neto, nem tampouco o fato de que seu pai internou-o por um mal-entendido; ele é submetido ao coquetel de drogas obrigatório a todo o paciente (o que em pouco tempo o deixa dopado, flácido e sorumbático), e quando suas tentativas de sair dali se tornam expressivas demais, sofre o eletrochoque –durante as visitas de seus pais (a mãe é vivida por Cássia Kiss), ele é visto somente no bem-cuidado jardim para visitação (e não na lúgubre instalação interna), o médico trata de alertá-los para os efeitos naturalmente paranóicos de seus delírios de abstinência (para que seus apelos genuínos por ajuda não sejam levados em conta) e a engorda provocada por um dos efeitos colaterais do coquetel de drogas leva-os a crer que ele está comendo bem e sendo bem-tratado (e não deixado à mercê de uma rotina massacrante de presídio).
Quando, enfim, os apelos de Neto afetam sua mãe e convencem seu pai a tirá-lo de lá, o mal já está feito: Neto está socialmente inutilizado, com manifestações agudas de depressão e surtos psicóticos –é um deles que o leva para outra clínica (das duas mostradas no filme, representativas das várias pelas quais o autor passou), na qual a antipatia de um dos enfermeiros (Jairo Mattos), o leva a sofrer doses cavalares de psicotrópicos injetáveis e a penar por dias inteiros numa espécie de solitária escura e úmida.
Lançado em 2001, e peça bastante fundamental na campanha que o próprio Austregésilo Carrano moveu contra a metodologia inaceitável dos manicômios brasileiros, “Bicho de Sete Cabeças” era um produto de cinema híbrido ao mesclar elementos vindos da fase da Retomada (economia de recursos, filmagens de guerrilha, praticidade espartana de encenação e realização) com aspectos emergentes do Novo Cinema Brasileiro, com obras que galgariam uma qualidade insuspeita nos anos por vir –é um trabalho de louvável primor na direção, e revelador do grande talento de Rodrigo Santoro, até então visto como um mero galã televisivo. Foi depois desta forte atuação que ele começou uma carreira bastante significativa no cinema norte-americano.

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