terça-feira, 4 de agosto de 2020

Intacto

A sorte –ou, em contraponto à ela, o azar –é um conceito abstrato ou trata-se de algo real, manejável, negociável? Gira em torno da segunda opção a ideia central deste filme do diretor espanhol Juan Carlos Fresnadillo que apresenta, do início ao fim, um equilíbrio e um domínio narrativo a conduzir com primor sua trama habilmente dividida entre as inverossimilhanças do fantasioso e a austeridade do realismo –sem nunca, no entanto, ceder às implicações convencionais de um ou de outro.
O intrincado novelo de trama, sub-tramas e diversos personagens começa com Federico (Eusebio Poncela, de “800 Balas”), dono de um dom curioso: Com um toque na mão, ele é capaz de absorver a sorte de outras pessoas; habilidade muito útil nos cassinos onde trabalha (e prospera) extraindo a sorte de ganhadores inconvenientes que ameaçam prejudicar a casa.
Mas, Federico é traído por suas próprias pretensões: Ele quer deixar esse ramo e usar a quantia absurda de sorte que absorveu para ganho próprio. No entanto, o Judeu (o sempre magnífico Max Von Sydow), seu chefe, também tem tal dom, e com ele tira esse ‘poder’ de Federico, tornando-o um homem ordinário, antes de abandoná-lo, por assim dizer, à própria sorte.
Após esse prólogo minucioso, passam-se sete anos, e Fresnadillo (numa narrativa que espelha a inteligência arguta de grandes obras do cinema argentino) finalmente começa a introduzir o protagonista de fato do filme: O aparentemente desafortunado Tomás (Leonardo Sbaraglia) que, ao sobreviver num acidente aéreo vai diretor para o jugo da polícia: Ele trazia consigo maços de dinheiro roubado colados ao corpo (!).
Contudo, Tomás cai no radar de Federico que, nos últimos anos, tentou rastrear indivíduos com a sorte sobrehumana que ele tem –afinal, ele foi o único sobrevivente dentre 237 pessoas naquele avião que caiu! –a fim de tentar aproximar-se novamente do Judeu e obter sua revanche.
O roteiro de Fresnadillo, porém, não se acomoda somente nesse princípio básico já cheio de nuances –e que, em si, representaria um desafio para um diretor menos hábil –ele apresenta outros personagens, essenciais à progressão nunca previsível da história, como Sara (Mónica Lopez), uma policial sobrevivente de um trágico acidente que está no encalço de Tomás (e cuja tragédia a torna também alguém capaz de sugar a sorte alheia); ou Alejandro (Antonio Dechent, de “Juan dos Mortos”), mais um apostador nos moldes de Tomás e Federico, cujo caminho, ao cruzar-se com Sara, inclui todos eles num mesmo e rocambolesco plano que culminará, mais uma vez, nos domínios do Judeu.
Há parcimônia e zelo insuspeitos na condução do diretor Fresnadillo. Se por um lado seu trabalho dosa elementos mirabolantes agregados às características mais plausíveis de sua premissa obtendo um todo harmonioso em sua engenhosidade, por outro, ele preserva uma narrativa sempre lenta e uma direção de atores onde ninguém consegue brilhar mais que o veterano Von Sydow, mas estes são detalhes pontuais demais, insignificantes demais, diante do filme sólido, envolvente e francamente notável que ele consegue urgir.

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