quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A Batalha Por Cidadão Kane

Além da alcunha de ‘maior filme de todos os tempos’, “Cidadão Kane”, de Orson Welles, foi um trabalho que enfrentou características bastante peculiares na forma de transtornos que encontrou para chegar às telas –e isso tudo se explica pelo fato de que a obra de Welles era essencialmente inspirada na vida de um milionário de poderosa influência naqueles anos 1930-40 de então: O magnata William Handolph Hearst.
O documentário concebido por Thomas Lennon e Michael Epstein, para a American Experience Fundation, gasta um tempo considerável justapondo as trajetórias pregressas (e equivalentes em diversos níveis) de Hearst e Welles, anunciando o tempo todo que, em algum momento, eles haverão de colidir.
Como num bom filme de suspense, essa colisão é protelada até o ponto do intolerável.
Se Hearst, quarenta e um anos mais velho que Welles, era um magnata nascido em berço de ouro e que moldou um império jornalístico para assegurar a extensão de seu poder ante as outras pessoas –poder este que começou em São Francisco lançando mão de uma embrionária imprensa marrom e galgou até a Califórnia e Hollywood, reinando entre seus executivos, produtores, diretores, astros e estrelas –Welles, por sua vez, era um gênio prodígio vindo de Nova York, onde chacoalhou a inércia do teatro e do rádio com suas imposições assoberbadas e seus projetos visionários, planejados com audácia.
Ambos eram atraídos por desafios. Ambos se prestaram à uma estrada rumo à grandeza. E ambos costumavam deixar alguns escrúpulos pelo meio do caminho.
Quando Welles seguiu a escalada natural de seu sucesso –potencializada pela famosa transmissão radiofônica inspirada em “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells –e foi para a Costa Oeste, seu contrato com o estúdio da RKO previa um inédito domínio total sobre a criação qualitativa das obras que realizaria.
Por um longo tempo indagou-se quais obras seriam estas –e enquanto isso, Welles e seu séquito de atores trazidos de Nova York não pouparam festas e bebedeiras.
Foi uma ideia partida de seu co-roteirista, Herman J. Mankiewicz, quem deu o estopim àquele que, por fim, seria seu retumbante filme de estréia: Uma biografia disfarçada –porém, carregada de alfinetadas e ferina nos quesitos pessoais –do todo poderoso Hearst.
Assim, Mankiewicz isolou-se numa cidadezinha e passou a construir seu roteiro que paulatinamente passava por revisões do próprio Welles acrescentando ao material a sua própria personalidade –já definido que ele iria produzir, dirigir e estrelar o filme –colocando passagens de sua própria vida (como a morte precoce da mãe).
Muitas alusões à Hearst foram mantidas, entretanto, aquela que mais deve tê-lo perturbado (e pela qual o próprio Welles, já envelhecido, chega a lamentar num depoimento) é o retrato impiedoso, carregado de malícia e insensibilidade, da atriz Marion Davies, um dos maiores casos amorosos de Hearst décadas antes, injustamente retratada no filme como uma mulher sem talento, histriônica, obcecada por bebedeiras e quebra-cabeças, e alçada à ribalta pela mera paixonite de um magnata da imprensa que a fez protagonista de seus jornais.
Em sua postura austera e imparcial, o documentário não santifica nem Welles, nem Hearst –ambos são flagrados em seus momentos de insensata truculência para com seus subalternos –preferindo sublinhar a notável similaridade desses antagonistas.
Tudo o mais (coadjuvantes, enredo, circunstâncias) serviu de moldura ao seu terrível embate: Com “Cidadão Kane” pronto, a crítica Louella Parsons, da folha de pagamento e do círculo de confiança do próprio Hearst, teve acesso a uma exibição privada e horrorizou-se com o que viu. Na sequência, Hearst usou de todo seu poder para vetar “Cidadão Kane”.
Se não conseguiu destruir as cópias (salvas graças a um discurso de Orson Welles pela liberdade de expressão realizado em Nova York), ele tentou impedir seu lançamento; se não foi capaz de fazê-lo (as ameaças de Hearst para que salas de cinema não exibissem “Kane” foram atendidas, mas a RKO projetou uma pequena sala em Nova York para custear a premiére lá mesmo!), ele tentou usar de influência para prejudicar a trajetória no filme no circuito comercial; se também não foi de todo bem sucedido nisso (apesar das vaias compradas na cerimônia do Oscar 1942, onde “Kane” teve 9 indicações, e ainda saiu com o prêmio de Melhor Roteiro Original), Hearst mirou então toda sua artilharia no próprio Orson Welles: Seguiu-se um forte ataque da mídia direcionado por Hearst que apontava Welles como possível adepto do comunismo (uma ficha sua foi criada pelo FBI por conta disso), tecia críticas prejudiciais aos seus projetos teatrais, obtendo com o tempo terrível efeito sísmico sobre sua carreira. Nunca mais Welles teve projetos viabilizados sem aborrecimentos (mesmo “Soberba”, sua obra seguinte à “Kane”, sofreu interferência dos produtores), concluindo seus filmes nas décadas seguintes (pelo menos aqueles que foram concluídos) com dinheiro emprestado/mendigado e/ou baixo orçamento.
O documentário, contudo, deixa claro que a justiça foi poética: Hearst, falecido em 1951, apesar do vasto controle sobre a mídia da qual usou e abusou, foi incapaz de impedir que sua imagem passasse a ser lembrada exclusivamente pelo filme que tanto quis amaldiçoar.
E “Cidadão Kane”, apesar do destino algo mal-fadado de seu genial realizador, sobreviveu ao tempo, sagrando-se nas décadas posteriores como um dos melhores filmes de todos os tempos na avaliação de respeitados críticos de cinema.
Uma prova de que, se a vida dos homens é finita (mesmo aqueles que se fazem grandes), o cinema, em compensação, é eterno e perene.

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