Além da alcunha de ‘maior filme de todos os
tempos’, “Cidadão Kane”, de Orson Welles, foi um trabalho que enfrentou
características bastante peculiares na forma de transtornos que encontrou para
chegar às telas –e isso tudo se explica pelo fato de que a obra de Welles era
essencialmente inspirada na vida de um milionário de poderosa influência
naqueles anos 1930-40 de então: O magnata William Handolph Hearst.
O documentário concebido por Thomas Lennon e
Michael Epstein, para a American Experience Fundation, gasta um tempo
considerável justapondo as trajetórias pregressas (e equivalentes em diversos
níveis) de Hearst e Welles, anunciando o tempo todo que, em algum momento, eles
haverão de colidir.
Como num bom filme de suspense, essa colisão é
protelada até o ponto do intolerável.
Se Hearst, quarenta e um anos mais velho que
Welles, era um magnata nascido em berço de ouro e que moldou um império
jornalístico para assegurar a extensão de seu poder ante as outras pessoas
–poder este que começou em São Francisco lançando mão de uma embrionária imprensa
marrom e galgou até a Califórnia e Hollywood, reinando entre seus executivos,
produtores, diretores, astros e estrelas –Welles, por sua vez, era um gênio
prodígio vindo de Nova York, onde chacoalhou a inércia do teatro e do rádio com
suas imposições assoberbadas e seus projetos visionários, planejados com
audácia.
Ambos eram atraídos por desafios. Ambos se
prestaram à uma estrada rumo à grandeza. E ambos costumavam deixar alguns
escrúpulos pelo meio do caminho.
Quando Welles seguiu a escalada natural de seu
sucesso –potencializada pela famosa transmissão radiofônica inspirada em “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells –e foi para a Costa Oeste, seu contrato com o
estúdio da RKO previa um inédito domínio total sobre a criação qualitativa das
obras que realizaria.
Por um longo tempo indagou-se quais obras
seriam estas –e enquanto isso, Welles e seu séquito de atores trazidos de Nova
York não pouparam festas e bebedeiras.
Foi uma ideia partida de seu co-roteirista,
Herman J. Mankiewicz, quem deu o estopim àquele que, por fim, seria seu
retumbante filme de estréia: Uma biografia disfarçada –porém, carregada de
alfinetadas e ferina nos quesitos pessoais –do todo poderoso Hearst.
Assim, Mankiewicz isolou-se numa cidadezinha e
passou a construir seu roteiro que paulatinamente passava por revisões do
próprio Welles acrescentando ao material a sua própria personalidade –já
definido que ele iria produzir, dirigir e estrelar o filme –colocando passagens
de sua própria vida (como a morte precoce da mãe).
Muitas alusões à Hearst foram mantidas,
entretanto, aquela que mais deve tê-lo perturbado (e pela qual o próprio
Welles, já envelhecido, chega a lamentar num depoimento) é o retrato impiedoso,
carregado de malícia e insensibilidade, da atriz Marion Davies, um dos maiores
casos amorosos de Hearst décadas antes, injustamente retratada no filme como
uma mulher sem talento, histriônica, obcecada por bebedeiras e quebra-cabeças,
e alçada à ribalta pela mera paixonite de um magnata da imprensa que a fez
protagonista de seus jornais.
Em sua postura austera e imparcial, o
documentário não santifica nem Welles, nem Hearst –ambos são flagrados em seus
momentos de insensata truculência para com seus subalternos –preferindo sublinhar
a notável similaridade desses antagonistas.
Tudo o mais (coadjuvantes, enredo,
circunstâncias) serviu de moldura ao seu terrível embate: Com “Cidadão Kane”
pronto, a crítica Louella Parsons, da folha de pagamento e do círculo de
confiança do próprio Hearst, teve acesso a uma exibição privada e horrorizou-se
com o que viu. Na sequência, Hearst usou de todo seu poder para vetar “Cidadão
Kane”.
Se não conseguiu destruir as cópias (salvas
graças a um discurso de Orson Welles pela liberdade de expressão realizado em
Nova York), ele tentou impedir seu lançamento; se não foi capaz de fazê-lo (as
ameaças de Hearst para que salas de cinema não exibissem “Kane” foram
atendidas, mas a RKO projetou uma pequena sala em Nova York para custear a
premiére lá mesmo!), ele tentou usar de influência para prejudicar a trajetória
no filme no circuito comercial; se também não foi de todo bem sucedido nisso
(apesar das vaias compradas na cerimônia do Oscar 1942, onde “Kane” teve 9
indicações, e ainda saiu com o prêmio de Melhor Roteiro Original), Hearst mirou
então toda sua artilharia no próprio Orson Welles: Seguiu-se um forte ataque da
mídia direcionado por Hearst que apontava Welles como possível adepto do
comunismo (uma ficha sua foi criada pelo FBI por conta disso), tecia críticas
prejudiciais aos seus projetos teatrais, obtendo com o tempo terrível efeito
sísmico sobre sua carreira. Nunca mais Welles teve projetos viabilizados sem
aborrecimentos (mesmo “Soberba”, sua obra seguinte à “Kane”, sofreu
interferência dos produtores), concluindo seus filmes nas décadas seguintes
(pelo menos aqueles que foram concluídos) com dinheiro emprestado/mendigado
e/ou baixo orçamento.
O documentário, contudo, deixa claro que a
justiça foi poética: Hearst, falecido em 1951, apesar do vasto controle sobre a
mídia da qual usou e abusou, foi incapaz de impedir que sua imagem passasse a
ser lembrada exclusivamente pelo filme que tanto quis amaldiçoar.
E “Cidadão Kane”, apesar do destino algo
mal-fadado de seu genial realizador, sobreviveu ao tempo, sagrando-se nas
décadas posteriores como um dos melhores filmes de todos os tempos na avaliação
de respeitados críticos de cinema.
Uma prova de que, se a vida
dos homens é finita (mesmo aqueles que se fazem grandes), o cinema, em
compensação, é eterno e perene.
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