quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Perfect Blue

Quando bateu os olhos pela primeira vez em “Perfect Blue”, Darren Aronofsky deve ter ficado tão perplexo quanto admirado: Só assim para entender as razões dele ter comprado os direitos autorais da animação de estréia de Satoshi Kon na intenção de reaproveitar as suas composições de cena em “Requiem Para Um Sonho”, além de usar grande parte de seu conceito básico na inspiração para “Cisne Negro”.
A ideia de Satoshi Kon ao adaptar o romance febril de Yoshikazu Takeuchi era construir uma narrativa cuja indistinção entre realidade e alucinação fosse, aos olhos do público, o grande charme da experiência; terminou criando uma obra cujas perguntas –a maioria de respostas nebulosas –perseguem seus apreciadores até hoje.
Como num pesadelo cinematográfico de David Lynch, “Perfect Blue” até começa com uma premissa em princípio acessível antes de submergir o público em sua imponderabilidade: A jovem, linda e amada por seus fãs, Mima Kirigoe, membro do grupo pop musical “Cham”, toma a brusca decisão de deixar a banda pela qual ficou famosa e seguir carreira de atriz.
Seus acessores, Rumi e Tadokoro, sabem o caminho pedregoso que Mima terá pela frente: A percepção angelical e imaculada que seu público tem dela será comprometida com essa nova fase da carreira cujas expectativas ela deposita numa série de TV onde sua personagem, inicialmente pequena, deverá ir ganhando mais expressão.
Contudo, isso se dá por meios distorcidos: A personagem que ela interpreta exige de Mima a execução de uma cena difícil (e perturbadora) de estupro (!).
Paralelamente a esse desafio profissional de Mima, nos é mostrado um fã estranho e obcecado que encontra maneiras de estar sempre próximo dela, em meio às sombras dos bastidores –ele também parece ser o responsável (ou não) por um site chamado “Quarto de Mima” onde uma espécie de diário on-line é mantido por alguém se passando por ela –e conhecedor de sua rotina a ponto de reproduzir passagens que, de fato, somente a própria Mima saberia! –e parece ter uma identidade digital, Me-Mania, claramente perturbada pelo novo rumo da carreira da musa.
Satoshi Kon aparenta, a partir do momento em que estabelece as diretrizes básicas de sua trama, equacionar a perda de controle de Mima sobre os rumos da própria carreira com a incapacidade de discernir os acontecimentos à sua volta –seriam eles sonhos ou realidade? Isso porque os ganchos narrativos que encerram abruptamente muitas das cenas funcionam como um ‘momento de despertar’; logo, presumimos que a sequência anterior era um sonho –entretanto, em que momento o sonho começou? Quando ele, de fato, terminou? E como saber se o sonho não é, também ele, alimentado por lembranças reais?
Na estrutura surreal que nos leva a desvendar, Satoshi Kon oferece variações e alternativas aterradoras para o que se passa com a mente de Mima; O programa de TV (onde foi estuprada) teria sido a realidade, enquanto que a vida na qual era uma celebridade adorada foi criação de sua própria mente fragmentada pelo trauma (!); enquanto uma série de assassinatos começam a serem executados contra pessoas com alguma ligação com ela.
Removendo paulatinamente as certezas do público através desse tortuoso processo subjetivo ao qual submete sua protagonista, Satoshi Kon apresenta um belíssimo conto de suspense –dono de algumas das mais primorosas passagens em animação perpetradas no anos 1990 –onde questiona as incoerências desconcertantes na cultura de adoração das celebridades, elemento que o Japão herdou do Ocidente e potencializou em sua era moderna.
Surpreende, portanto, que um trabalho tão carregado de reflexão, minimalismo e excelência de acabamento tenha sido tão somente sua obra de estréia –tão elevada é a perfeição que “Perfect Blue” alcança que pouquíssimas das obras seguintes de Satoshi Kon (praticamente todas igualmente brilhantes) equiparam seu brilhantismo.

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