terça-feira, 24 de novembro de 2020

Memórias de Ontem

 


Isao Takahata formava, ao lado do grande Hayao Myiazaki, uma dobradinha criativa curiosa à frente do prestigiado Estúdio Ghibli: Myiazaki sempre salientou a tradução do encanto, o fascínio pueril e lúdico, a magia oculta no inesperado; já, Takahata, enxergava a vida com um pouco mais de austeridade, o drama predominava em suas percepções do mundo e do ser humano. Sem a dor que agrega o conhecimento e o auto-conhecimento, a vida seria, para Takahata, uma experiência vazia. Norteado por essa filosofia, ele concebeu obras de contundência única como o terrivelmente comovente e profundamente devastador “O Túmulo dos Vagalumes”. Na esteira dessa produção de dramaturgia tão singular, Takahata lançou, já no início dos anos 1990, este “Memórias de Ontem” que, numa primeira impressão, dá a entender que ele resolveu pegar leve.

Entretanto, como em sua aflitiva obra anterior, Takahata tem primordial interesse pelos infortúnios que definem seus protagonistas, pelos abalos sísmicos provocados em suas existências por momentos de profunda tristeza.

Em “Memórias de Ontem”, a protagonista é Taeko. Num recurso narrativo surpreendente para expectadores habituados à animações ocidentais simplificadas e infantilizadas, Taeko é flagrada em dois momentos distintos da vida: Aos 10 anos de idade, quando estudava, nos anos 1960, numa escola pública japonesa, vivia às voltas com o bullying eventual dos colegas e travava dentro de casa, uma constante disputa existencial com as rabugentas irmãs mais velhas e com a rigidez dos pais –disputa essa que ela estava sempre fadada a perder, sendo o membro mais jovem da família –e aos 27 anos, quando, motivada por experiências inclusive vivenciadas na infância, ela tira férias do emprego em Tóquio, e decide trocar a cidade por um período de espairecimento e trabalho no campo.

A narrativa de Takahata vai e vem entre esses dois extremos, interessada, acima de tudo, nos momentos de maior frustração da pequena Taeko (como as recriminações familiares por suas notas baixas em matemática; os constrangimentos impronunciáveis diante das primeiras menstruações; ou a proibição paterna para suas tão sonhadas oportunidades teatrais), e de como tais momentos moldaram a Taeko adulta, definindo sua personalidade, direcionando suas decisões, e seguindo ainda a atormentá-la, na forma de lembranças dolorosas com as quais, tanto tempo depois, ela ainda não aprendeu a lidar.

Há, nesta obra de Takahata, espaço de sobra para a beleza: Ela surge, indicativa da arte primordial executada pelos animadores do Ghibli, numa sucessão de cenas maravilhosas, como quando a família recebe um abacaxi (uma iguaria exótica lá no Japão) sem saber como comê-lo (!); quando, ao trocar as primeiras palavras com um rapazinho apaixonado, Taeko tem um devaneio vendo-se flutuando no espaço; quando enfim chega ao campo para trabalhar na colheita de flores (os campos floridos, animados numa mescla de computação com desenho feito à mão, são um deslumbre que dificilmente deixará a memória); e, sobretudo, na avassaladora e emocionante cena que transcorre nos créditos finais, quando Taeko enfim consegue superar o passado e as tristezas de sua infância para ganhar coragem e correr atrás da própria felicidade.

Isao Takahata, após uma festejada carreira como animador, nos deixou no dia 5 de abril de 2018. Este é, pois, o cinema que ele nos deu. Um cinema humanista e lírico, desafiador às fórmulas, inconformista às zonas de conforto, dono de algumas das emoções mais sinceras e arrebatadoras a comparecer nas obras-primas do Estúdio Ghibli.

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