Isao Takahata formava, ao lado do grande Hayao Myiazaki, uma dobradinha criativa curiosa à frente do prestigiado Estúdio Ghibli: Myiazaki sempre salientou a tradução do encanto, o fascínio pueril e lúdico, a magia oculta no inesperado; já, Takahata, enxergava a vida com um pouco mais de austeridade, o drama predominava em suas percepções do mundo e do ser humano. Sem a dor que agrega o conhecimento e o auto-conhecimento, a vida seria, para Takahata, uma experiência vazia. Norteado por essa filosofia, ele concebeu obras de contundência única como o terrivelmente comovente e profundamente devastador “O Túmulo dos Vagalumes”. Na esteira dessa produção de dramaturgia tão singular, Takahata lançou, já no início dos anos 1990, este “Memórias de Ontem” que, numa primeira impressão, dá a entender que ele resolveu pegar leve.
Entretanto, como em sua aflitiva obra anterior,
Takahata tem primordial interesse pelos infortúnios que definem seus
protagonistas, pelos abalos sísmicos provocados em suas existências por momentos
de profunda tristeza.
Em “Memórias de Ontem”, a protagonista é Taeko.
Num recurso narrativo surpreendente para expectadores habituados à animações
ocidentais simplificadas e infantilizadas, Taeko é flagrada em dois momentos
distintos da vida: Aos 10 anos de idade, quando estudava, nos anos 1960, numa
escola pública japonesa, vivia às voltas com o bullying eventual dos colegas e
travava dentro de casa, uma constante disputa existencial com as rabugentas
irmãs mais velhas e com a rigidez dos pais –disputa essa que ela estava sempre
fadada a perder, sendo o membro mais jovem da família –e aos 27 anos, quando,
motivada por experiências inclusive vivenciadas na infância, ela tira férias do
emprego em Tóquio, e decide trocar a cidade por um período de espairecimento e
trabalho no campo.
A narrativa de Takahata vai e vem entre esses
dois extremos, interessada, acima de tudo, nos momentos de maior frustração da
pequena Taeko (como as recriminações familiares por suas notas baixas em
matemática; os constrangimentos impronunciáveis diante das primeiras menstruações;
ou a proibição paterna para suas tão sonhadas oportunidades teatrais), e de
como tais momentos moldaram a Taeko adulta, definindo sua personalidade,
direcionando suas decisões, e seguindo ainda a atormentá-la, na forma de
lembranças dolorosas com as quais, tanto tempo depois, ela ainda não aprendeu a
lidar.
Há, nesta obra de Takahata, espaço de sobra
para a beleza: Ela surge, indicativa da arte primordial executada pelos
animadores do Ghibli, numa sucessão de cenas maravilhosas, como quando a
família recebe um abacaxi (uma iguaria exótica lá no Japão) sem saber como
comê-lo (!); quando, ao trocar as primeiras palavras com um rapazinho apaixonado,
Taeko tem um devaneio vendo-se flutuando no espaço; quando enfim chega ao campo
para trabalhar na colheita de flores (os campos floridos, animados numa mescla
de computação com desenho feito à mão, são um deslumbre que dificilmente
deixará a memória); e, sobretudo, na avassaladora e emocionante cena que
transcorre nos créditos finais, quando Taeko enfim consegue superar o passado e
as tristezas de sua infância para ganhar coragem e correr atrás da própria
felicidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário