quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

O Garoto Selvagem


 Realizado entre duas obras sobre o personagem Antoine Doinel –sendo a anterior “Beijos Proibidos” e a posterior “Domicílio Conjugal” –o pequeno conto “O Garoto Selvagem” (obra que o diretor Truffaut dedica ao intérprete de Doinel, Jean-Pierre Léaud) discorre sobre os caminhos às vezes tortuosos do aprendizado.

Encontrado nos recôncavos do Cantão de São Sernin, em Aveyron, uma região da França, no ano de 1798, o garoto selvagem vivido por Jean-Pierre Cargol nunca teve contato com a civilização humana –e no desprendimento narrativo que se presta, o diretor François Truffaut não esboça qualquer preocupação em informar os meios pelos quais o menino perdeu-se por lá; nem de onde veio, nem porque.

Imediatamente despachado para integrar-se à sociedade, o garoto –batizado Victor –é deixado aos cuidados do Dr. Jean Itard (o próprio Truffaut, assumindo o personagem com lucidez e entusiasmo) e da enfermeira Sra. Guerin (Françoise Seigner).

O processo de aprendizado é lento; contando já seus aproximados doze anos de idade, Victor já tem uma noção particular de como ser, comunicar-se, portar-se ou locomover-se (raramente sobre as duas pernas), e tal noção, oriunda especialmente de sua mente, não se enquadra às convenções.

Inicialmente, o Dr. Itard (autor de um dos livros nos quais este filme, a partir da sua história real, se inspira) tenta ensinar-lhe de maneiras convencionais –especialmente, a fala e a comunicação, manifestação que aparentemente ele enxerga com indiferença –contudo, muito disso não encontra resposta; Victor tem seus próprios meios para interpretar a informação que lhe chega, e as consequências disso são imprevisíveis para seu educador.

Na simplicidade que evoca, Truffaut faz de “O Garoto Selvagem” uma fábula intrigante, curiosamente relacionável à outras obras –algumas posteriores, inclusive –sobre indivíduos privados de compreensão pela interatividade humana, sendo os exemplos mais evidentes “O Enigma de Kaspar Hauser” (no drama que extrai da perene inadequação existencial de seu protagonista) e “O Homem Elefante” (na visão cinematográfica dotada de contundente teor crítico em relação à civilização opressora em contraponto à liberdade pessoal). Contudo, o maior diálogo que “O Garoto Selvagem” estabelece é com um filme do próprio Truffaut: O seminal “Os Incompreendidos”, também ele sobre uma tentativa de adaptação social forçada visto pelos olhos de uma criança.

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