segunda-feira, 28 de junho de 2021

As Viagens de Gulliver


 Em 1996, houve um esforço válido, ainda que não de todo bem sucedido, para transpor com fidelidade e minúcia, o clássico de Jonathan Swift para as telas. Estrelado pelo casal Ted Danson e Mary Steenburgen, e dirigido por Charles Sturridge (diretor inglês prolífico da TV e realizador de um dos segmentos do incompreendido “Ária”), “As Viagens de Gulliver” era uma minissérie que, aqui no Brasil, foi lançada em formato de filme numa versão integral (e quase interminável) de 179 minutos de duração.

A extensão garantiu a presença de todas as peripécias do protagonista (as quatro viagens relatadas no livro, quando a grande maioria das adaptações se restringe apenas às duas primeiras) em seus mais variados detalhes –algo que uma metragem de cinema dificilmente comportaria –entretanto, tal decisão também atribui ao filme um ritmo por vezes enfadonho de ser acompanhado.

Na primeira metade do Século XVIII, o viajante Lemuel Gulliver (Ted Danson, simpático, porém, ocasionalmente deslocado) retorna para junto de sua esposa, Mary (Mary Steenburgen, tão talentosa quanto encantadora) e do filho Tom (Tom Sturridge) que mal conheceu, após quase nove anos ausente. Nesse ínterim, a família de Gulliver viu-se sujeita à autoridade do vilanesco Dr. Bates (James Fox), bastante interessado em desposar Mary e assumir a posse da propriedade de Gulliver de uma vez por todas. Entretanto, o fato de Gulliver regressar não lhe tira os planos perversos da mente: Gulliver aparentemente voltou completamente pinel, delirando acerca de lugares absurdos e inacreditáveis que visitou –e, não raro, ostentando loucura de fato ao misturar lembranças com realidade.

Enquanto ele é mandado para um hospício, as memórias de suas viagens são descortinadas na narrativa por meio de flashbacks que se mesclam de forma um tanto confusa –e, muitas vezes, na intenção de ocultar certa limitação de orçamento da produção. Assim, testemunhamos o naufrágio (sugerido elipticamente) que leva Gulliver a ficar prisioneiro do pequeno povo de Lilliputh, para quem ele é um gigante –e cujo rei, imaturo e obtuso, é interpretado pelo grande Peter O’Toole. Ao fugir dos lilliputhianos após envolver-se em suas guerras, Gulliver novamente ganha os mares e acaba em Brobdingnag onde todos são, desta vez, gigantes (!), e ele um ser miniaturizado –neste país, a rainha surge vivida por Alfre Woodward, de “Capitão América-Guerra Civil”.

Levado por um gavião gigante após ficar um tempo aprisionado por lá, Gulliver acaba sendo resgatado pelos moradores de Laputa, a ilha voadora (conceito aproveitado por Hayao Myiazaki no genial “O Castelo No Céu”). Em Laputa, os moradores –todos homens –usufruem do privilégio de serem considerados gênios (embora fique claro que sejam intelectualmente desmazelados), e só pensam nas redundantes estratégias de guerra contra suas mulheres, que agora vivem em terra firme longe deles (!). Farto de ficar na insensatez desse fogo cruzado, Gulliver parte, já ávido por voltar ao lar, mas seu caminho cruza-se com o de um historiador-feiticeiro (Omar Shariff) que o mantém preso durante algum tempo para que seu sangue sirva à sua feitiçaria: Toda noite, ele embebeda Gulliver para extrair seu sangue e, com ele, trazer alguma personalidade histórica do passado por meio de seu espelho mágico e, com isso, registrar a História “direto da fonte”.

Na sua última fuga antes do regresso para casa, Gulliver ainda conhece uma comunidade de equinos inteligentes o bastante para se comunicar com ele –enquanto os humanos das redondezas são, eles sim, criaturas animalescas e irracionais.

Todos esses percalços se sucedem paralelos aos aborrecimentos presentes de Gulliver, nos quais tenta provar sua sanidade diante da vil sabotagem do Dr. Bates. O grande problema é que não há um trabalho mais esmerado no que tange ao ritmo e à narrativa desses desdobramentos assim conduzidos ao expectador, tornando quase um suplício acompanhar a sucessão aleatória e cansativa de tais sequências. Esse lapso acaba, inclusive, desperdiçando não só as pontas inúmeras do vasto e surpreendente elenco (que inclui além dos já citados, nomes como John Gielgud, Ned Beaty, Edward Fox, Geraldine Chaplin, Kristin Scott-Thomas e Warwick Davis), mas também banaliza o grande mérito da produção: A iniciativa de relatar na íntegra o livro sempre mutilado de Swift em outras ocasiões.

Por incrível que possa parecer, não são os momentos mais conhecidos –como em Lilliputh, em Brobdingnag, ou em Laputa –os mais envolventes do filme, mas sim os trechos em que Gulliver se vê em sua desventura doméstica, já que é neles que podemos apreciar a inebriante presença de Mary Steenburgen.

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