Da audaz fase mexicana da carreira de Luis Buñuel, esta obra reflete com mais contundência do que qualquer outro trabalho seu, as impressões dele acerca do regime de Franco, na Espanha, do qual Buñuel se afastou refugiando-se no México.
A câmera de Buñuel segue personagens
inicialmente aleatórios que, aos poucos, serão reunidos em suas aflições pela
fina ironia do destino. Num povoado sem identificação na América do Sul,
assolado por mandos e desmandos do poderio militar opressor, acompanhamos um
estrangeiro, Shark (Georges Marchal), ser inadvertidamente tomado como um dos
líderes de uma rebelião de mineradores locais. Shark, entretanto, nada mais é
que um soldado da fortuna, amoral e apolítico, disposto a vender a própria mãe
para salvar sua pele.
Outros personagens surgem aqui e ali, chamando
mais a atenção que os meros figurantes: Djin (Simone Signoret, de “O Boulevard do Crime”, a lembrar muito Lauren Bacall), prostituta local responsável por
denunciar Shark aos guardas; o velho e sonhador Castin (Charles Vanel, de
“Alice”) e sua filha surda-muda Maria (Michele Girardon); e o benevolente padre
Lizzardi (Michel Piccoli).
Buñuel não tem pressa em vislumbrar a todos
como almas direta ou indiretamente afetadas pelas intempéries da opressão:
Djin, cujo ofício já era mal-quisto de antemão no vilarejo, teme por sua vida
como todos, sobretudo, depois que abrigou Castin, desejoso de casar-se com ela,
uma vez que ele, tal como Shark, foi tomado como um dos líderes do levante que,
em dado momento da trama, envolve o vilarejo numa guerra civil. Nesse fogo
cruzado, o padre Lizzardi tenta salvar o maior número possível de pessoas –se
não seus corpos, ao menos, suas almas.
Sãos esses personagens, diversificados em suas
convicções e motivações –Shark, Castin, Djin, Maria e o padre Lizzardi –que
acabam dentro de um barco, guiado pelo inescrupuloso Chenco (Tito Junco),
dispostos a fugir através do rio das forças militares e, mais tarde, a
perderem-se na mata para, se possível, ganhar as fronteiras do Brasil e
escapar.
A obra de Buñuel cresce consideravelmente a
partir desse ponto, quando seu curioso grupo de protagonistas é arrebatado das
circunstâncias sociais do vilarejo e submetido aos testes de sobrevivência na
selva inclemente, úmida, asfixiante e interminável. Como é inerente à sua
personalidade e ao seu estilo, Buñuel não perde a oportunidade de usar momentos
em que essa situação-limite priva seus personagens dos protocolos polidos da
civilização –tal e qual ele faria anos depois em “O Anjo Exterminador”: Djin,
por exemplo, surta finalmente jogando na cara de Castin seu repúdio por ele,
antes superado apenas pela conveniência de casar-se com um velho abastado.
Todavia, o que desperta de fato o interesse de
Buñuel são as dinâmicas diferenciadas passíveis de serem exploradas em tal
ambiente –seja essa exploração de nível físico (os percalços corrosivos que
todos vão experimentando ao descobrir as parcas chances de sobreviver naquele
infindável mundo verde e selvagem) ou psicológico (o ser humano mais afável que
Shark revela ser ao mostrar sua capacidade de, quem sabe, liderar o grupo até a
sobrevivência; o entendimento do padre Lizzardi dos impulsos humanos que
norteiam cada um deles, inclusive ele próprio, a imprevista insanidade que
acomete Castin, e que pode selar o desfecho amargo de todos eles).
Mestre na observação das dualidades humanas,
Buñuel se esbalda com circunstâncias onde as alianças existenciais assim
esboçadas se transformam ao sabor do acaso, sem nunca soar contraditório com
seus personagens. Indício de seu grande brilhantismo. Ao encontrar os escombros
de um avião sem sobreviventes caído na selva, leia-se, com bagagens vastas em
roupas limpas, alimento e até mesmo utensílios de valor, e sem proprietários
vivos que reclamem sua posse, os protagonistas reveem, mais uma vez quem são e
o que querem. Djin, mais volúvel, almeja uma parceria sincera com Shark, que
outrora denunciou aos inimigos; o padre Lizzardi não esconde certa injúria
quando lhe parecem evidentes traços de egoísmo da outrora imaculada Maria (e ao
hostilizá-la a narrativa sugere sua renúncia aos valores cristãos); e Castin
(na mais explícita personificação dos temas de Joseph Conrad em seu “O Coração
das Trevas”) perde-se ainda mais no imprevisível de sua loucura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário