quarta-feira, 28 de julho de 2021

A Morte Neste Jardim


 Da audaz fase mexicana da carreira de Luis Buñuel, esta obra reflete com mais contundência do que qualquer outro trabalho seu, as impressões dele acerca do regime de Franco, na Espanha, do qual Buñuel se afastou refugiando-se no México.

A câmera de Buñuel segue personagens inicialmente aleatórios que, aos poucos, serão reunidos em suas aflições pela fina ironia do destino. Num povoado sem identificação na América do Sul, assolado por mandos e desmandos do poderio militar opressor, acompanhamos um estrangeiro, Shark (Georges Marchal), ser inadvertidamente tomado como um dos líderes de uma rebelião de mineradores locais. Shark, entretanto, nada mais é que um soldado da fortuna, amoral e apolítico, disposto a vender a própria mãe para salvar sua pele.

Outros personagens surgem aqui e ali, chamando mais a atenção que os meros figurantes: Djin (Simone Signoret, de “O Boulevard do Crime”, a lembrar muito Lauren Bacall), prostituta local responsável por denunciar Shark aos guardas; o velho e sonhador Castin (Charles Vanel, de “Alice”) e sua filha surda-muda Maria (Michele Girardon); e o benevolente padre Lizzardi (Michel Piccoli).

Buñuel não tem pressa em vislumbrar a todos como almas direta ou indiretamente afetadas pelas intempéries da opressão: Djin, cujo ofício já era mal-quisto de antemão no vilarejo, teme por sua vida como todos, sobretudo, depois que abrigou Castin, desejoso de casar-se com ela, uma vez que ele, tal como Shark, foi tomado como um dos líderes do levante que, em dado momento da trama, envolve o vilarejo numa guerra civil. Nesse fogo cruzado, o padre Lizzardi tenta salvar o maior número possível de pessoas –se não seus corpos, ao menos, suas almas.

Sãos esses personagens, diversificados em suas convicções e motivações –Shark, Castin, Djin, Maria e o padre Lizzardi –que acabam dentro de um barco, guiado pelo inescrupuloso Chenco (Tito Junco), dispostos a fugir através do rio das forças militares e, mais tarde, a perderem-se na mata para, se possível, ganhar as fronteiras do Brasil e escapar.

A obra de Buñuel cresce consideravelmente a partir desse ponto, quando seu curioso grupo de protagonistas é arrebatado das circunstâncias sociais do vilarejo e submetido aos testes de sobrevivência na selva inclemente, úmida, asfixiante e interminável. Como é inerente à sua personalidade e ao seu estilo, Buñuel não perde a oportunidade de usar momentos em que essa situação-limite priva seus personagens dos protocolos polidos da civilização –tal e qual ele faria anos depois em “O Anjo Exterminador”: Djin, por exemplo, surta finalmente jogando na cara de Castin seu repúdio por ele, antes superado apenas pela conveniência de casar-se com um velho abastado.

Todavia, o que desperta de fato o interesse de Buñuel são as dinâmicas diferenciadas passíveis de serem exploradas em tal ambiente –seja essa exploração de nível físico (os percalços corrosivos que todos vão experimentando ao descobrir as parcas chances de sobreviver naquele infindável mundo verde e selvagem) ou psicológico (o ser humano mais afável que Shark revela ser ao mostrar sua capacidade de, quem sabe, liderar o grupo até a sobrevivência; o entendimento do padre Lizzardi dos impulsos humanos que norteiam cada um deles, inclusive ele próprio, a imprevista insanidade que acomete Castin, e que pode selar o desfecho amargo de todos eles).

Mestre na observação das dualidades humanas, Buñuel se esbalda com circunstâncias onde as alianças existenciais assim esboçadas se transformam ao sabor do acaso, sem nunca soar contraditório com seus personagens. Indício de seu grande brilhantismo. Ao encontrar os escombros de um avião sem sobreviventes caído na selva, leia-se, com bagagens vastas em roupas limpas, alimento e até mesmo utensílios de valor, e sem proprietários vivos que reclamem sua posse, os protagonistas reveem, mais uma vez quem são e o que querem. Djin, mais volúvel, almeja uma parceria sincera com Shark, que outrora denunciou aos inimigos; o padre Lizzardi não esconde certa injúria quando lhe parecem evidentes traços de egoísmo da outrora imaculada Maria (e ao hostilizá-la a narrativa sugere sua renúncia aos valores cristãos); e Castin (na mais explícita personificação dos temas de Joseph Conrad em seu “O Coração das Trevas”) perde-se ainda mais no imprevisível de sua loucura.

É certo que, dentre eles, poucos chegarão vivos ao fim do filme, contudo, na reflexão afiada e até certo ponto sarcástica de Buñuel para com as predisposições do ser humano, essa seleção natural se dará menos pelos perigos encontrados na selva e mais pelas índoles auto-destrutivas de cada um.

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