segunda-feira, 26 de julho de 2021

O Senhor das Armas


 Sob sua direção, Andrew Niccol havia então realizado dois filmes: O cultuado “Gattaca-A Experiência Genética” e o irregular, porém, promissor “S1mone”. Entretanto, não passou despercebido da crítica –e talvez nem do próprio Niccol –que seus roteiros, quando filmados por outros diretores (caso do fabuloso “Show de Truman”, dirigido por Peter Weir) obtinham excelência cinematográfica maior do que quando tratados por seu próprio autor.

Em “O Senhor das Armas”, nota-se um esforço digno e intermitente de Niccol em corresponder a esse anseio e fazer um filme, por assim dizer, mais vívido e menos artificial, lapsos que assolavam suas outras obras, em especial, “S1mone”.

E ele já entrega virtuosismo e originalidade em seu prólogo –uma sequência ininterrupta onde a câmera acompanha a trajetória de um cartucho de bala, desde a confecção, passando pelas idas e vindas de seu comércio até o momento em que por fim é usado no campo de batalha para tirar uma vida. Na esteira desse momento um tanto quanto impactante, é deveras uma trajetória –só que, desta vez, de um personagem de carne e osso –que o restante do filme também se prestará a acompanhar: A do mercador de armas Yuri Orlov, vivido por Nicolas Cage. Numa narração em off –à qual Cage acrescenta toda a fina ironia com a qual moldou diversos personagens –somos informados que Yuri é descendente de imigrantes ucranianos que, em plena Nova York dos anos 1970, fingem-se passar por judeus a fim de evitar problemas.

Diferente do irmão mais novo, Vitaly (Jared Leto), para quem o restaurante da família já comportava as medíocres aspirações, Yuri almeja alguma grandeza. Nem que o seja por meios um tanto quanto ilícitos: Ao testemunhar uma fracassada tentativa mafiosa de execução, algo nele desperta para a utilidade crucial das armas de fogo e, munido desse entendimento algo filosófico da propensão à auto-destruição do ser humano, Yuri se torna um traficante de armas.

Iniciando de forma tímida, ele vai aprimorando sua lábia de vendedor à medida que os anos 1980 vão chegando e avançando –e entregando assim, circunstâncias sócio-políticas propícias ao surgimento de mercadores negros como ele próprio. Yuri –em princípio, ao lado de Vitaly, até que o vício em cocaína dele o obriga a internar-se –passa a sucatear arsenais de repúblicas destituídas, espólios de guerras civis reaproveitados onde outros conflitos emergiram, e vai aos mais variados cantos do mundo, do Leste Europeu ao Sul da Àfrica, fornecendo armas para que as guerras assim travadas continuem ocorrendo, sempre convencendo a si mesmo que, no papel de mero intermediário entre o armamento e seus usuários, ele não tem qualquer participação na carnificina assim deflagrada.

Dois personagens representam, de certa maneira, o caminho de Yuri rumo ao fim: Um está lá desde o começo, e vem a ser a bela Ava Fontaine (Bridget Moynaghan, de “Eu, Robô”, “O Novato” e “John Wick-DeVolta Ao Jogo”), modelo e objeto de desejo de Yuri desde os tempos de classe média, ela cai em seus braços quando ele já tem dinheiro o suficiente para ostentar riqueza de sobra (e para fazer dela sua esposa-troféu); o outro personagem surge em consequência das atividades ilegais de Yuri: O incorruptível agente da Interpol Jack Valentine (Ethan Hawke, que trabalhou com Niccol em “Gattaca”).

Sempre um passo a frente de Valentine justamente por valer-se das pequenas brechas da lei que lhe permitem escapar ileso sem provas circunstanciais que o incriminem, Yuri vai constituindo seu império enquanto fornece armas às guerras do mundo inteiro. Sua situação chega perto de complicar-se quando ele se envolve com o psicótico ditador de uma república sul-africana, que o faz sentir-se bem próximo da mortandade que julga tão longe de si –e planta pequenos indícios que permitem a Valentine finalmente aproximar-se dele, não sem contar com ajuda indireta de Ava, aos poucos, consciente da atividade do marido.

Embora lembre um pouco o posterior “Feito Na América”, com Tom Cruise” –e como ele seja alardeadamente baseado num suposto fato real –“O Senhor das Armas” persegue, do início ao fim, a referência primordial do cinema de Martin Scorsese: O diretor Niccol emprega uma câmera inquieta, uma montagem tão minuciosa quanto frenética, um roteiro meticuloso e hábil na junção entre seriedade e farsa, usando de tudo isso para enfatizar o êxtase embriagante em que se transforma a via-crucis de seu protagonista antes dela ganhar os ares sombrios da inevitável derrocada –que surge quando, já nos anos 1990, o perfil geopolítico mundial acirra ainda mais as guerras ao redor do mundo, tornando seu trabalho um pântano de areia movediça do qual não existem mais chances de escapar.

A justaposição cruelmente irônica que o filme de Niccol coloca ante seu personagem principal é que, no fim das contas, o meio em que vive, e no qual tanto fez por se inserir, terminou se tornando o inferno que tragou toda sua vida pessoal, e do qual já não há mais oportunidades de escapatória.

É claro que falta nele o manejo habilidoso que faz de Martin Scorsese um mestre (pois, se fosse fácil fazer, qualquer um faria...), mas Andrew Niccol não deixa de entregar um espetáculo cheio de credibilidade e astúcia, um produto de entretenimento que tem a sublime intenção de levar alguma fagulha de consciência ao expectador, mesmo que o faça focando num protagonista que não possui nenhuma.

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