Sob sua direção, Andrew Niccol havia então realizado dois filmes: O cultuado “Gattaca-A Experiência Genética” e o irregular, porém, promissor “S1mone”. Entretanto, não passou despercebido da crítica –e talvez nem do próprio Niccol –que seus roteiros, quando filmados por outros diretores (caso do fabuloso “Show de Truman”, dirigido por Peter Weir) obtinham excelência cinematográfica maior do que quando tratados por seu próprio autor.
Em “O Senhor das Armas”, nota-se um esforço
digno e intermitente de Niccol em corresponder a esse anseio e fazer um filme,
por assim dizer, mais vívido e menos artificial, lapsos que assolavam suas
outras obras, em especial, “S1mone”.
E ele já entrega virtuosismo e originalidade em
seu prólogo –uma sequência ininterrupta onde a câmera acompanha a trajetória de
um cartucho de bala, desde a confecção, passando pelas idas e vindas de seu
comércio até o momento em que por fim é usado no campo de batalha para tirar
uma vida. Na esteira desse momento um tanto quanto impactante, é deveras uma
trajetória –só que, desta vez, de um personagem de carne e osso –que o restante
do filme também se prestará a acompanhar: A do mercador de armas Yuri Orlov,
vivido por Nicolas Cage. Numa narração em off –à qual Cage acrescenta toda a
fina ironia com a qual moldou diversos personagens –somos informados que Yuri é
descendente de imigrantes ucranianos que, em plena Nova York dos anos 1970,
fingem-se passar por judeus a fim de evitar problemas.
Diferente do irmão mais novo, Vitaly (Jared
Leto), para quem o restaurante da família já comportava as medíocres
aspirações, Yuri almeja alguma grandeza. Nem que o seja por meios um tanto
quanto ilícitos: Ao testemunhar uma fracassada tentativa mafiosa de execução,
algo nele desperta para a utilidade crucial das armas de fogo e, munido desse
entendimento algo filosófico da propensão à auto-destruição do ser humano, Yuri
se torna um traficante de armas.
Iniciando de forma tímida, ele vai aprimorando
sua lábia de vendedor à medida que os anos 1980 vão chegando e avançando –e
entregando assim, circunstâncias sócio-políticas propícias ao surgimento de
mercadores negros como ele próprio. Yuri –em princípio, ao lado de Vitaly, até
que o vício em cocaína dele o obriga a internar-se –passa a sucatear arsenais
de repúblicas destituídas, espólios de guerras civis reaproveitados onde outros
conflitos emergiram, e vai aos mais variados cantos do mundo, do Leste Europeu
ao Sul da Àfrica, fornecendo armas para que as guerras assim travadas continuem
ocorrendo, sempre convencendo a si mesmo que, no papel de mero intermediário
entre o armamento e seus usuários, ele não tem qualquer participação na
carnificina assim deflagrada.
Dois personagens representam, de certa maneira,
o caminho de Yuri rumo ao fim: Um está lá desde o começo, e vem a ser a bela
Ava Fontaine (Bridget Moynaghan, de “Eu, Robô”, “O Novato” e “John Wick-DeVolta Ao Jogo”), modelo e objeto de desejo de Yuri desde os tempos de classe
média, ela cai em seus braços quando ele já tem dinheiro o suficiente para
ostentar riqueza de sobra (e para fazer dela sua esposa-troféu); o outro
personagem surge em consequência das atividades ilegais de Yuri: O
incorruptível agente da Interpol Jack Valentine (Ethan Hawke, que trabalhou com
Niccol em “Gattaca”).
Sempre um passo a frente de Valentine
justamente por valer-se das pequenas brechas da lei que lhe permitem escapar
ileso sem provas circunstanciais que o incriminem, Yuri vai constituindo seu
império enquanto fornece armas às guerras do mundo inteiro. Sua situação chega
perto de complicar-se quando ele se envolve com o psicótico ditador de uma
república sul-africana, que o faz sentir-se bem próximo da mortandade que julga
tão longe de si –e planta pequenos indícios que permitem a Valentine finalmente
aproximar-se dele, não sem contar com ajuda indireta de Ava, aos poucos,
consciente da atividade do marido.
Embora lembre um pouco o posterior “Feito Na América”, com Tom Cruise” –e como ele seja alardeadamente baseado num suposto
fato real –“O Senhor das Armas” persegue, do início ao fim, a referência
primordial do cinema de Martin Scorsese: O diretor Niccol emprega uma câmera
inquieta, uma montagem tão minuciosa quanto frenética, um roteiro meticuloso e
hábil na junção entre seriedade e farsa, usando de tudo isso para enfatizar o
êxtase embriagante em que se transforma a via-crucis de seu protagonista antes
dela ganhar os ares sombrios da inevitável derrocada –que surge quando, já nos
anos 1990, o perfil geopolítico mundial acirra ainda mais as guerras ao redor
do mundo, tornando seu trabalho um pântano de areia movediça do qual não
existem mais chances de escapar.
A justaposição cruelmente irônica que o filme
de Niccol coloca ante seu personagem principal é que, no fim das contas, o meio
em que vive, e no qual tanto fez por se inserir, terminou se tornando o inferno
que tragou toda sua vida pessoal, e do qual já não há mais oportunidades de
escapatória.
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