Com frequência, os filmes refletem a época a que pertencem. É por isso que vistos pelo prisma de valores da atualidade, alguns trabalhos de outrora soam diferente do que soaram aos expectadores de seu período –em alguns casos, não foi percebido algo que para nós é gritante em evidência; em outros, perde-se a capacidade de compreender o contexto onde suas circunstâncias estavam inseridas.
É provável que ambas as coisas aconteçam com
“Nunca Fui Santa”. Visto hoje, ele é um filme problemático ao tratar em tom de
comédia de uma relação abusiva, autoritária, machista e unilateral. E faz desse
viés o seu grande diferencial ante a vasta demanda de seu gênero.
Para compreender melhor essa questão, vamos por
partes: “Nunca Fui Santa” –ou “Bus Stop”, título que faz menção à parada de
ônibus onde muitos pontos cruciais da trama (em especial, seu começo e seu fim)
se sucedem –inicia-se com dois matutos, o jovem Bo Becker (Don Murray) e o
velho Virgil (Arthur O’Connell, de “Viagem Fantástica”, “A Corrida do Século” e
“Ninho de Cobras”) viajando em um ônibus da longínqua Montana para a ocasião de
um rodeio realizado na cidade de Phoenix.
O jovem Bo nunca foi para muito longe do rancho
onde cresceu e, portanto, nunca esteve numa grande cidade antes, nem tampouco
teve maiores contatos com uma mulher. Ainda assim, Bo vai para lá disposto a
encontrar a mulher de sua vida, a qual, nas suas precipitadas e presunçosas
palavras, haverá de ser “um anjo”!
Nesse irrequieto prólogo, já nos é mostrada a
personalidade daquele que é o protagonista masculino: Encrenqueiro, arrogante,
irredutível e certamente mimado (nem Virgil, nem outros adultos à sua volta
parecem ser capazes de fazê-lo ir contra sua vontade), Bo não desperta nada no
público, exceto injúria; parece que o diretor Joshua Logan (de “Sayonara”)
achou que tal demonstração de empáfia seria confundida com graça e comicidade,
mas ela só provoca desprezo por aquele comportamento grosseiro.
Uma vez na cidade, Bo encontra o que supõe ser
um anjo, mas que, na perspicácia de sua narrativa, Joshua Logan deixa claro que
não é: Cherie, a dançarina fulgurante, abilolada e perplexa vivida pela
maravilhosa Mailyn Monroe, filmada, em sua primeira aparição, sob uma luz
vermelha translúcida, a evidenciar os aspectos pecaminosos que cercam uma
personagem tão tremendamente sensual (como o é também a atriz que a
interpreta).
Para Bo, entretanto, que (como será sintomático
ao longo de todo o filme) só enxerga as coisas da maneira como ele as deseja
ver, Cherie é o “anjo” pelo qual ele procurava. E tem a ideia fixa de casar com
ela –e nessa certeza, a opinião da moça absolutamente não importa!
Eis aí, pois, a grande questão que, ao que
parece, não incomodou as plateias daqueles anos 1950 de então, mas que soa
perturbadora aos expectadores de hoje: O filme de Joshua Logan transfigura numa
comédia romântica, uma situação de assédio em todos os ângulos possíveis.
Cherie, apesar de ser a ‘loira burra’ com a qual Marilyn Monroe sempre foi
associada em sua carreira (entretanto, não deixe-se enganar, aqui ela entrega
uma atuação minimalista e diferenciada de fato!), deixa claro que não quer se
casar com Bo de jeito nenhum.
Nada disso impede o cowboy truculento e sem
noção de invadir o apartamento da moça na manhã seguinte (ela havia terminado
de trabalhar às 5 da manhã!), e arrastá-la para o rodeio onde não queria ir (!)
–o diretor Joshua Logan vale-se, aqui, da experiência adquirida em “Férias de Amor” para filmar sequências de um rodeio verdadeiro, e inserir tais imagens,
de autenticidade quase documental, à narrativa, valorizando-a.
Não pára por aí: Ele também a obriga a casar-se
num cartório e, por fim, a arrasta para o ônibus que a levará para Montana,
onde passarão a viver. Nesse processo, Bo vai promovendo escândalos e
praticando grosserias em público que apenas pioram a aflição da moça (mas, que
claramente, na opinião dos realizadores, tem o objetivo de ser hilário). Até as
tentativas de escapatória dela acabam frustradas de forma revoltante –na mais
notória delas, quando tenta fugir embarcando num ônibus, Cherie é laçada e
puxada de volta, como se fosse um dos animais do rodeio (!!).
Já próximo de seu desfecho, quando o ônibus
regressa para Montana na trajetória gelada que é sua rota, a narrativa de
Joshua Logan até tenta ensaiar uma espécie de redenção fajuta para o prepotente
Bo quando os indícios de que Cherie não o quer se tornam óbvios até mesmo para
ele, e então, Bo parece aprender uma lição quando apanha em uma briga para o
motorista do ônibus (francamente, o melhor personagem do filme!).
Os modos e as atitudes do personagem até mudam
–das bravatas exultantes de valentia, ele passa a fazer cara de cachorro sem
dono (é um tanto absurdo que o ator Don Murray tenha concorrido ao Oscar de
Ator Coadjuvante por este trabalho) –mas aí, o estrago já estava feito:
Dificilmente algo fará com que a plateia passe a sentir algo por Bo que não
seja repulsa absoluta.
Todavia, não é isso que parece pensar seu
roteiro e sua direção: Ao incorporar uma atmosfera mais intimista, em
contraponto a comédia rasgada de antes, eles promovem também uma injustificada
reviravolta sentimental, onde Cherie revê a ideia de casar-se com Bo.
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