quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Crepúsculo dos Deuses


 Uma sátira a um só tempo afiada, macabra e inédita das vaidosas veleidades de Hollywood e um registro atordoante de um mergulho irreversível na loucura, o grande trabalho de Billy Wilder é também dono de uma série de grandes cenas antológicas, entre elas o começo, em que o protagonista, na condição de homem morto dá início à narrativa que levará a sua morte: Um gatilho narrativo tão audacioso quanto desafiador naquela Velha Hollywood de então, quando ousadias desse gênero não eram nem um pouco comuns no circuito de produções, sobretudo, as gabaritadas e conceituadas como o caso desta.

“Sunset Boulevard” toma emprestada a estrutura inicial de um film noir para dar o empuxo a sua trama: E de fato é com um film noir que ele muito se parece ao regredir no tempo e mostrar –numa narrativa contada em off pelo protagonista –o roteirista Joe Gill (William Holden), o homem morto numa piscina visto na primeira cena, iniciar seu relato de como foi recebido numa mansão decadente por Norma Desmond (Gloria Swanson), outrora diva do cinema mudo que vive por lá aos cuidados de seu mordomo (Erich Von Stroheim) que foi também seu diretor e marido.

Jovem e ambicioso roteirista, Joe é incumbido de escrever o roteiro do filme que deve representar o retorno triunfal de Norma à ribalta, entretanto, a relação entre eles não se resume somente a isso: Passando a morar com ela, Joe é convertido em seu amante, sob o preço de se ver oprimido por seu egocentrismo.

Desvencilhar-se dela e, quem sabe, engatar um relacionamento destituído de obsessões com a jovem assistente Betty (Nancy Olson) é uma esperança que, se chega a passar pela mente de Joe, também deve se submeter à periculosidade cada vez mais palpável na neurose que Norma vem cultivando.

Na ânsia por deter o envelhecimento que a afasta da imagem imortalizada de diva, Norma Desmond é uma figura emoldurada numa mansão de ares vitorianos tanto quanto o é o Charles Foster Kane de Orson Welles em “Cidadão Kane” –personagens prisioneiros da própria ambição de irem além de sua limitada humanidade,

Esse roteiro meticuloso desvencilha-se da óbvia auto-sabotagem em entregar o fato de que o personagem principal irá morrer em algum momento antes do final surpreendendo paulatinamente o público por meio de expedientes bem menos óbvios.

Logo, essa situação –na qual se descobre preterida por uma jovem com menos idade, um reflexo da própria decadência que sua outrora fulgurante carreira experimentou –levará Norma Desmond a sucumbir a loucura, resultando numa tragédia.

Ao compor “Sunset Boulevard” com uma seriedade notadamente incomum em relação aos seus outros trabalhos famosos, Wilder criou um clássico noir sobre a decadência hollywoodiana, onde a descida rumo ao inferno e à loucura (trajetória da qual a antológica cena final é um brilhante eufemismo) reflete também os altos e baixos experimentados pelo próprio cinema ao longo da primeira metade do Século XX; numa cena especialmente dotada de cinismo, sadismo e crueldade, Wilder mostra as afeições deterioradas e conformadas de Buster Keaton, H.B. Warner e Anna Q. Nilsson, estrelas do cinema mudo, flagrados como espécimes titubeantes de um tempo passado. Na contundência sem igual dessa mescla um tanto incomum entre acidez dramática e sarcasmo fatalista, este formidável trabalho de Billy Wilder continua sendo lembrado e celebrado por inúmeros críticos e cineastas pela obra-prima que é.

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