sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O Sacrifício do Cervo Sagrado


 Como alguns autores a despontar no panorama cinematográfico do novo milênio, o grego Yorgos Lanthimos não foge do bizarro –ele o abraça com satisfação –seus trabalhos são, com frequência, inclassificáveis, flutuam entre gêneros incomuns e supostamente inconciliáveis, e ele pouco parece se importar em fornecer uma experiência compreensível ao público.

Dentre suas tantas obras, “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, premiado com a Palma de Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2017, é a que mais reforça o tema da punição, presente com mais ou menos ênfase em toda sua filmografia. Contudo, é aquele tipo de filme que se desvenda aos poucos diante do expectador –se é que tal coisa chega, de fato, a acontecer...

Vivido por Colin Farrell –que trabalhou com Lanthimos no anterior (e igualmente estranho) “O Lagosta” –o protagonista chama-se Dr. Steven Murphy, e trata-se de um cirurgião cardiologista. Na cena desconcertante que abre o filme, é mostrado em foco um coração humano real, batendo num peito aberto, durante uma cirurgia –certamente, uma imagem extraída de uma cirurgia verdadeira.

Não sabemos ainda, mas essa imagem guarda uma informação crucial.

A rotina do Dr. Murphy é um confortável dia-a-dia de classe média-alta, salpicada de pequenas perversidades mal-esclarecidas: Ele goza de prestígio no hospital em que trabalha, enquanto acompanhamos, com certa intriga, os encontros um tanto suspeitos dele com um jovem –seria seu filho fora do casamento? Ou um amante num caso inapropriado?

A narrativa de Lanthimos deixa que essas questões brotem na mente do público ao negar informações mais específicas de imediato. Em casa, o Dr. Murphy tem a esposa, Anne (Nicole Kidman, sempre maravilhosa), com quem compartilha, na cama, algumas fantasias sexuais um tanto bizarras (ela submete-se a ele fingindo estar completamente anestesiada, qual a jovem protagonista de “Beleza Adormecida”).

Pouco a pouco descobrimos que o jovem com quem o Dr. Murphy se encontra, Martin (vivido por Barry Keoghan, de “Dunkirk”), é na realidade filho de um paciente seu que morreu na mesa de operações; a cena que abre o filme, lembra?

Impelido pela culpa, Murphy não consegue evitar que Martin acabe se envolvendo com sua família, que além de Anne inclui também seus filhos, a jovem Kim (Raffey Cassidy, de “Branca de Neve e O Caçador”) e o pequeno Bob (Sunny Suljic). O próprio Martin também arrasta Murphy para sua casa, na qual a mãe dele (Alicia Silverstone aparecendo em uma única cena) tenta um mal-sucedido flerte extra-conjugal.

Entretanto, o filme de Lanthimos, que já era aflitivo em sua narrativa tétrica durante essas passagens aparentemente corriqueiras, mas tratadas num clima de absoluta obscuridade, se torna francamente perturbador quando males inexplicáveis começam a se abater sobre os filhos do casal Murphy: Primeiro, Bob perde a mobilidade das pernas; logo seguido por Kim. Ambos não conseguem comer nada e isso vai tornando-os cada vez mais fracos.

Mesmo cercando-os de médicos e especialistas, ninguém consegue dar um diagnóstico do que está a assolar as duas crianças. E o desespero passa a consumir os pais.

Na verdade, há uma explicação, que reside mais em uma natureza intuitiva do que prática: Num diálogo bastante rápido, encenado para ser quase indiscernível, Martin revela à Murphy que trata-se de uma espécie de justiça cósmica; Murphy matou alguém (o pai dele, já que aos poucos vão surgindo indícios de que ele foi negligente na operação), e assim, ele perderá alguém de sua família –e uma vez que esse alguém não vai ser escolhido pelo próprio Murphy, todos os seus entes queridos irão definhar até a morte.

Equacionando seu enredo pra lá de macabro com o Mito grego de Efigênia (no qual seu pai Agamennon, é obrigado a ver a filha morrer como castigo por matar um cervo sagrado), este trabalho deliberadamente indigesto, corrosivo e fatalista de Yorgos Lanthimos parece unir as influências tanto de Michael Haneke quanto de Stanley Kubrick (seja na técnica perfeccionista e assimétrica, seja no teor frio, opressivo e implacável da premissa) oferecendo poucas respostas e ainda menos soluções fáceis, resultando num trabalho que normalmente exacerba o público.

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