quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Vá e Veja


 O diretor Elem Klimov já tinha uma larga e aclamada carreira na Rússia quando concebeu “Vá e Veja” do alto de uma experiência e um conhecimento de cinema essenciais à realização de tal projeto –tivesse “Vá e Veja” um diretor mais jovem, mais cru e mais inexperiente, ele dificilmente atingiria os hiperlativos que obtém.

“Vá e Veja” é um dos grandes filmes de guerra do cinema. E sua grandeza, diferente dos demais, não se dá pela reconstituição empolgante ou eletrizante das sequências de conflito –embora o rigor técnico seja também uma de suas inúmeras qualidades –essa grandeza é obtida pela mensagem enfática, sensorial e humanista do preço alto que a guerra cobra de suas vítimas. Não há, na obra de Klimov, uma exaltação dos vitoriosos; não há a adrenalina do combate. Tudo é aflição e desespero. As cenas de sofrimento e crueldade infligidas por pessoas, umas às outras, são horripilantes. Há quem diga que a realização de Klimov está entre os filmes mais perturbadores de todos os tempos. E tudo isso está dentro dos objetivos do diretor.

Inicialmente idílico, ele acompanha o dia-a-dia do garoto Florya (Alexei Kravchenko) que, na aldeia da Bielo-Rússia onde vive com sua família, experimenta uma juvenil excitação com a possibilidade de unir-se, ainda aos catorze anos de idade, aos partisans, a corajosa resistência que confronta os alemães nas florestas úmidas de seu país, em plena Segunda Guerra Mundial.

Ao deixar sua aldeia e juntar-se aos partisans, Florya logo percebe que eles não são os heróis que ele, em sua inocência, presumia: São homens rudes e embrutecidos, muitas vezes ignorantes do tratamento humano dispensado aos seus próprios e aflitos compatriotas. E todos refletem o comportamento de Kosach, seu líder, um homem flagrado com amargura e desdém para com a vida (inclusive a sua própria).

É um período onde Florya experimenta as facetas mais degradantes do processo de aprendizado e crescimento –eles submetem o jovem a tarefas ingratas, como lavar caldeirões encardidos, e o deixam de lado nas operações importantes.

No processo, Florya ainda atravessa as impressões agridoces de um quase primeiro amor: A aparição luminosa, bela e encantadora da jovem Glasha (Olga Mironova), garota, tal qual ele, incluída como ajudante na linha de frente.

Entretanto, nada neste filme é tão terrível que não possa ficar ainda pior: Um ataque a bomba esfacela as dependências do acampamento dos partisans em plena floresta e arremessa Florya (que fica momentaneamente surdo pelas explosões) junto de Glasha numa odisséia inacreditável e terrível. Juntos, os jovens devem avançar por florestas inóspitas e pântanos lamacentos e movediços até chegar à aldeia onde ele morava. Só para descobrir que ela foi invadida e todos (incluindo a família de Florya) foram trucidados!

Ao longo de todos esses percalços, o diretor Klimov lança mão de recursos simples, mas tremendamente objetivos e evidentes, para enfatizar o pesadeloa trágico da guerra: A surdez de Florya é imposta ao próprio público por um desenho de som atordoante que remove os ruídos específicos e os substitui por um zumbido intermitente, e a cena em que ele e Glasha se embrenham num lamaçal interminável está entre as mais aflitivas e desesperadoras já filmadas.

Entretanto, os momentos verdadeiramente chocantes e antológicos se encontram no terço final, quando Florya, conduzido por uma fuga improvisada e sem esperança acaba numa outra aldeia, na iminência de ser invadida por soldados nazistas. Todo aquele trecho abarca as sequências mais tétricas, impiedosas e assombrosas que se presume terem ocorrido numa guerra –e Klimov não poupa o expectador da brutalidade sem freios ao compor imagens que dificilmente alguém haverá de esquecer.

Realizado com incrível e assustadora excelência técnica, “Vá e Veja” não se vale da guerra para moldar-se como um filme de predisposições comerciais ou mercadológicas; ao invés disso, ele elabora, por meios artísticos, um dos mais contundentes manifestos em nome da paz e da necessidade humana de conciliação ao propor ao público a compreensão circunspecta e o esclarecimento alarmante de todo o malefício absoluto que a guerra significa.

Um filme repleto de momentos atrozes que acompanharão o expectador para sempre.

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