sexta-feira, 8 de outubro de 2021

O Gambito da Rainha


 O grande vencedor do Emmy 2021 de Melhor Minissérie ou Filme Para TV, “O Gambito da Rainha”, da Netflix, foi dirigido e escrito por Scott Frank (roteirista de “Irresistível Paixão” e “Minority Report-A Nova Lei”) a partir dos fatos reais que cercaram a vida de Elizabeth Harmon, uma enxadrista prodígio norte-americana.

Dotado daquela característica sublime que volta e meia acomete brilhantes obras televisivas –a de ser uma produção cinematográfica em todos os seus valores e definições, mas, por acaso, possuir uma duração proibitiva a um circuito de exibição comercial (sete horas, neste caso) –“O Gambito da Rainha” é uma conjunção primorosa de fatores muito felizes: Ao assumir a direção de um roteiro de sua autoria, Scott Frank deixou, de certa maneira, de lado os elementos intrincados com os quais apreciava adornar seus trabalhos –“O Gambito da Rainha” é acessível e inteligível, mesmo em momentos que presumimos que ele não venha a ser! –priorizando as emoções universais e os detalhes saborosos na trajetória de sua protagonista. A própria história real, da forma como vemos se desenrolar na tela, é uma jornada vibrante, notável e envolvente, pedindo para ganhar uma produção que a retratasse. E, finalmente, a bela e jovem atriz Anya-Taylor Joy, habituada à cada projeto a surpreender o público, entrega uma atuação precisa, cativante e carregada de empatia e inteligência.

A jovem Beth Harmon (no primeiro capítulo vivida pela pequena Isla Johnston) sofreu, ainda aos nove anos de idade, um trágico acidente onde perdeu a mãe. Abandonada pelo pai, de quem pouco teve informações (embora esse plot seja retomado mais tarde), ela vai parar em um orfanato para meninas, onde não encontra outra saída senão adaptar-se às rígidas e massacrantes regulamentações de então –meados de 1961. Lá, Beth, bem como todas as outras garotas, é submetida a um regime de psicotrópicos que buscavam inibir as tendências mais rebeldes das garotas internas. Aconselhada pela amiga Jolene (Moses Ingram), Beth aprende a guardar as cápsulas do remédio verde e usá-las somente na hora de dormir –embora não deixe, gradativamente, de viciar-se neles e em seu efeito letárgico.

A aptidão sem igual de Beth surge quando ela conhece, nos porões da dependência, um velho zelador (o veterano Bill Camp, de “Os Infratores” e “Inimigos Públicos”), flagrado sempre compenetrado sobre um tabuleiro de peças diferenciadas que chamam a atenção da jovem. Ele jogava xadrez. E, com o tempo, Beth aprende os movimentos de cada peça e passa a jogar com ele.

O fato de Beth, com apenas dez anos, superá-lo no jogo –ele, que era jogador de um clube de xadrez –lhe chama a atenção para o talento incomum da criança. Beth é levada para um colégio onde deve jogar simultaneamente (e sozinha) contra todos os membros do clube de xadrez –e derrota a todos!

Já mais velha –e interpretada então com energia cênica e magnetismo pela sensacional Anya-Taylor Joy –Beth é adotada, aos treze anos de idade (!) por um casal. Entretanto, essa não é necessariamente uma família feliz: O marido está em iminente abandono do lar, e a esposa (Marielle Heller, de “Um Lindo Dia Na Vizinhança”), agora mãe adotiva de Beth, afunda no alcoolismo –Beth foi nada mais que um recurso para que a mulher não ficasse sozinha, possibilitando a saída do marido sem complicações.

Frequentando uma escola normal –com meninos e meninas –Beth colide com todos os aspectos da vida normal que ela não teve contato durante seu período no orfanato e com sua falta de traquejo social. Todavia, a garota não deixa de perseguir o xadrez: Ela se informa dos campeonatos locais e vai vencendo, etapa após etapa, até galgar às disputas nacionais, e começar a chamar a atenção por suas capacidades.

Nesse ponto, quando alguns anos já transcorreram, ela viaja, ao lado da mãe, para diversas cidades americanas, de Las Vegas à Cinccinnati, competindo com jogadores de nível cada vez mais alto, e surpreendendo detratores e expectadores ao ombrear com todos eles em habilidade e conhecimento. A trajetória de Beth Harmon segue duas ênfases paralelas que definem em grande medida a jornada dessa protagonista: De um lado, os competidores, sempre homens e sempre intransigentes, em cujo desenvolvimento de personagens, aparecem inicialmente como adversários antagônicos, mas acabam ganhando a simpatia da heroína e do público se convertendo em aliados fundamentais em ocasiões vindouras –é o caso de Harry Beltik (Harry Melling, de "Harry Potter”), primeiro competidor realmente forte com quem ela se defronta; e Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster, de “Maze Runner”), enxadrista nova-iorquino que ensina a ela técnicas e percepções novas na forma de jogar xadrez; de outro lado, a concretização do vício de Beth, em psicotrópicos que calibram sua mente –equilibrando a ansiedade e a calmaria –para entender e visualizar jogadas de uma complexidade que escapa à mentes menos prodigiosas (tais jogadas são ilustradas em visualizações que ganham a adição de efeitos digitais a alterar sombras e texturas do cenário), e mais tarde, o próprio alcoolismo herdado do hábito auto-destrutivo da mãe adotiva.

A medida que se torna uma das mais aclamadas enxadristas de todos os tempos, competindo com verdadeiros mestres definidos para ela como adversários inatingíveis, Beth se coloca entre os melhores do mundo, e vai para Paris e, ao fim, para Moscou, onde lhe aguarda o maior desafio de sua carreira: O frio e impassível Vasily Borgov (Marcin Dorocinski).

Sem jamais ceder à obviedades, “O Gambito da Rainha” constrói pouco a pouco uma trajetória que captura o público com sua fantástica protagonista, em cuja história de vida ficam latentes, sem panfletagem redundante, o tratamento injustificado, ingrato e desdenhoso reservado às mulheres em ambientes presumidamente masculinos, além de proporcionar um retrato nunca menos que magistral das sucessivas partidas de xadrez mostradas ao longo da trama –algo fundamental à sua narrativa –às quais não desanimam os especializados (enxadristas da vida real estiveram entre os primeiros a apontar os méritos incomuns da minissérie) e nem confundem os leigos (os desafios de Beth, mesmo aqueles cujo detalhismo dos jogos escapam aos não-conhecedores, jamais deixam de ser tensos e emocionantes). Com sua maravilhosa heroína, “O Gambito de Rainha” leva o expectador a altos e baixos emocionais, à guinadas técnicas de impressionante complexidade embutidas nos jogos, e a pertinentes mensagens morais, muitos deles espantosos por existir em tanta intensidade numa história real.

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