segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Green Book - O Guia


 Os irmãos Peter e Bobby Farelly reinaram absolutos na comédia escrachada por muitos anos graças a sucessos como “Debi & Lóide”, “Quem Vai Ficar Com Mary?” ou “Eu, Eu Mesmo e Irene”. Por conta desse apelo essencialmente popular de suas realizações –além do caráter um tanto chulo presente em seu estilo de humor –jamais se cogitou a possibilidade de um deles ganhar um Oscar, contudo, foi isso que acabou acontecendo: Numa temporária tentativa de alçar um voo solo, Peter Farelly assumiu, sem a presença de seu irmão Bobby, a direção e o roteiro deste “Green Book-O Guia” que arrebanhou o Oscar 2019 de Melhor Filme num ano que contava com obras estupendas como “A Chegada” e “Infiltrado Na Klan” –cujo realizador, Spike Lee, não ficou nada feliz em perder para um filme onde o tema do racismo era abordado segundo o ponto de vista de um homem branco.

Ideologias à parte, “Green Book” sagra-se por ser basicamente um filme delicioso de se assistir, onde a junção equilibrada, hábil e astuta de comédia e drama serve aos propósitos da premissa e à empatia pelos personagens.

Na maestria com a qual ele praticamente habituou o público, Viggo Mortensen surge transfigurado –e na execução de um humor surpreendente –como Tony ‘Lip’ Vallelonga, um nova iorquino ítalo-americano que, para variar, tem lá suas relações com os mafiosos: Ele trabalha em um night-club como leão de chácara.

Em meados da década de 1960, quando negócios capitaneados pela máfia eram sempre inconstantes, Tony vê seu ganha-pão se acabar quando o clube é fechado.

À procura de emprego para colocar comida na mesa, Tony atende ao chamado de um certo Dr. Don Shirley (Mahershala Ali, fantástico), o qual ele descobre ser, não um médico, mas um músico, e negro!

Dr. Shirley tem uma série de apresentações agendadas ao longo de diversas cidades pelo sul norte-americano e precisa de não apenas um motorista, mas um funcionário à sua disposição para inúmeras tarefas. A ocupação paga bem, mas exige de Tony a disponibilidade de dois meses –e a chance de, quem sabe, não voltar a tempo para passar o Natal com a família.

Relutante pela condição inusitada em que é colocado –afinal, agora, o negro é o empregador e o branco o empregado, em plenos EUA, durante o auge da segregação racial e dos debates sobre os direitos civis –estranhamento que os dois protagonistas despertam em praticamente todos os coadjuvantes, Tony aceita o trabalho e ganha a estrada a bordo de um Cadillac Sedan DeVille azul levando Dr. Shirley no banco de trás.

E não é absolutamente nada difícil deduzir o que irá acontecer: Apesar das personalidades conflitantes –Tony é explosivo e macarrônico; Shirley é culto e meticuloso –e de inicialmente haver inevitáveis rusgas, os dois protagonistas, levados pela situação de convívio forçado, vão descobrindo certa afinidade e empatia, com a qual, por fim, forjam uma amizade genuína. E, se isso é deveras previsível, a condução inspirada de Peter Farelly e, em especial, as atuações reluzentes, carregadas de carisma e de vivacidade de Viggo Mortensen e Mahershala Ali transformam a experiência de acompanhar esse processo em algo saboroso, a ponto do expectador lamentar quando o filme chega a seu final.

Claro que isso não quer dizer que “Green Book” seja uma obra perfeita –ao surgir num período em que a própria indústria é questionada sobre sua representatividade e sobre a validade de obras abordando o preconceito contra negros visto pela ótica de realizadores brancos (como também fez, por exemplo, “Histórias Cruzadas”), a produção de Peter Farelly corre o risco de soar redundante e até mesmo anacrônica –argumentos dos quais se valeram os muitos que criticaram sua premiação no Oscar.

Ainda assim, é preciso ser um bocado desdenhoso para não reconhecer os méritos na bela metamorfose ética vivenciada pelo divertido personagem de Viggo Mortensen, ou no esforço emocionante e estóico do personagem de Mahershala Ali (este premiado com o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante) em representar seus semelhantes por meio de sua arte mesmo nos lugares em que eles jamais seriam aceitos.

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