segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

A Pantera Cor-de-Rosa


 Tudo, no que diz respeito a Hollywood, está aberto à reciclagem, ao reaproveitamento. Nenhum sucesso é sagrado demais para que, na geração seguinte, não seja refeito, repaginado e refilmado –em alguns casos, poucos anos são necessários para esse processo se iniciar.

No caso de “A Pantera Cor-de-Rosa”, tornado memorável graças ao talento ímpar de Peter Sellers e do traquejo em comédia do diretor Blake Edwards, era mesmo uma questão de tempo –após a morte de Peter Sellers, ocasionada durante as gravações de “A Trilha da Pantera Cor-de-Rosa”, até mesmo tentou-se, na década de 1990, reiniciar a franquia (quando essas iniciativas eram ainda raras no cinema comercial e, portanto, não havia muita experiência em saber como fazer) com o desastroso “O Filho da Pantera Cor-de-Rosa”, estrelado pelo mais inadequado impossível Roberto Benigni.

Mais uma década se passou, então, para que os estúdios de Hollywood por fim criassem coragem para uma nova empreitada. Desta vez, a distância de tempo a separar a nova versão da impecável série com Peter Sellers proporcionava um reboot de fato: Diferente de “O Filho...” que nada mais é que uma continuação das mais mambembes, o novo “Pantera Cor-de-Rosa”, de 2006, começa tudo do zero, reapresentando para toda uma nova geração de expectadores o personagem icônico do Inspetor Clouseau, agora vivido com empenho sobrehumano por Steve Martin.

Martin já era uma comediante em relativa atividade na época de Peter Sellers –os próprios extras do DVD dos filmes antigos flagram ele, num certo momento, enaltecendo o trabalho de Sellers –e sua recriação do Inspetor Clouseau esbarra numa inescapável homenagem, comprometida pelo fato de que, submetendo-se à comparação com o original, seu saldo sempre será negativo.

A trama, mais redonda que o filme original –no qual, sabe-se, muito do protagonismo de Clouseau e do humor certeiro foi encontrado gradualmente e ao custo de muito improviso –mostra o assassinato de um ídolo do futebol francês (ponta de Jason Statham) seguido do sumiço do diamante “Pantera Cor-de-Rosa”, o mcguffin que batiza e movimenta o enredo de todo o filme. Crimes misteriosos tornados notórios pelo escrutínio da mídia, o assassinato e o roubo –relacionados um ao outro por uma série de pistas –representam, assim, um desafio para a boa reputação da Scotland Yard, a polícia francesa. O Comissário Dreyfus (o sempre ótimo Kevin Kline), ávido pelo agrado dos holofotes e pela própria ascensão profissional, requisita então os conhecimentos do Inspetor Jacques Clouseau. No entanto, Closeau vive numa outra realidade, tamanha é sua falta de noção (!): Ele acredita-se um estrategista brilhante, um detetive de apurados instintos para detalhes que ninguém mais percebe e uma mente privilegiada capaz de deduções intrincadas e certeiras e, embora hajam alguns coadjuvantes que até partilhem dessa mesma impressão, não é nada disso; Clouseau é, sim, atrapalhado, desastrado, equivocado e passível das mais estapafúrdias conclusões.

A medida que as investigações avançam –contando com o auxílio do hábil e íntegro policial francês vivido por Jean Reno e pela deslumbrada assistente interpretada por Emily Mortimer –novos elementos são adicionados ao caldo intrincado da investigação, que a tornam ainda mais complexa: A sensual, nada confiável e complicadamente apaixonante cantora vivida por Beyoncé, sempre envolvida com vários suspeitos que sistematicamente vão morrendo (!); os vilanescos mercadores de diamantes relacionados a este e àquele personagem; o envolvimento do Serviço Secreto na forma do enigmático agente secreto 006 (Clive Owen, numa piadinha que na prática tem menos graça do que na teoria) e muitos outros.

Diretor de filmes com conteúdo para toda família (e digno de plena confiança da parte do astro Steve Martin que ele dirigiu em “Doze É Demais”), Shawn Levy conduz o filme enfatizando a trama policial com certa formulação genérica, um ensinamento deixado, diga-se, pelo próprio Blake Edwards, muitos anos antes: Todo o filme é escrito, concebido e planejado com suposta seriedade –e sob essa orientação a grande maioria do elenco de apoio se comporta –apenas seu caótico personagem principal emula a comédia que o filme realmente é; ele é quem deflagra as confusões, quem estrela as piadinhas e, por sua mera presença inusitada, converte o que seria normal num palco para o humor.

Funcionava às mil maravilhas quando Blake Edwards tinha Peter Selers, mas, Shawn Levy não apenas não é Edwards –ele não parece ser capaz de encontrar a essência do gracejo com a mesma facilidade e espontaneidade –como também não tem Sellers: No papel de Clouseau, Steve Martin dedica aqui um esforço visível. Ele pega características antológicas do personagem e as potencializa, mas seu humor parece pueril e não universal, sua presença é estranha e não extraordinária, seus improvisos são irritantes e não hilariantes, e suas estripulias evidenciam uma frequente falta de timing, seja do roteiro, da direção, ou dele próprio.

Não chega a ser uma catástrofe –expectadores, sobretudo, aqueles menos conscientes do trabalho de Sellers e Edwards, podem até se divertirem –mas, é brutalmente falho em igualar o brilho da comédia emblemática que se dispõe a recriar.

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