domingo, 11 de setembro de 2022

Liquid Sky


 Poucas obras dos anos 1980 são tão sujeitas à incompreensão maciça do público (e, por que não, da crítica) quanto “Liquid Sky”. Sensual, lisérgico, debochado, despudorado e incontornavelmente estranho, este filme norte-americano dirigido pelo russo Slava Tsukerman (em plena Gerra Fria!) é um retrato algo afetado e inapreensível da cena new wave nova iorquina de então, uma evolução da rebeldia ácida do punk rock rumo a um estado de espírito  mais alienado em seu próprio estilo e regado a doses cavalares de alucinógenos e todas as drogas que houvessem à disposição (!).

Para tal intento, o cerne de “Liquid Sky” é um disco voador que surge nos céus de Nova Yok –composto com a tosqueira que só o cinema B é capaz de moldar –dentro do qual um alienígena nutre um plano ainda mais tosco: Para tal criatura, a substância produzida pelo cérebro humano tem a mesma qualidade de uma droga poderosa, e ele passa a vigiar o apartamento da modelo bissexual Margaret (Anne Carlisle, uma personificação andrógina do conceito heroin chic) em busca de vítimas das quais ele possa extrair tal substância no instante em que atingem o clímax, pouco antes de serem mortas –o assim chamado liquid sky.

E nesse sentido, a vida social de Margaret, flagrada a partir de sua moradia numa cobertura em Manhattan, não somente é, no mínimo, intensa como também representa uma isca perfeita: Embora tenha uma namorada relativamente fixa, nas curvas da também andrógina Adrian (Paula E. Sheppard), Margaret tem parceiros masculinos e femininos a revezarem-se em seus lençóis a todo instante –e nenhum deles parece ser capaz, ainda assim, de levá-la a um orgasmo completo!

Outros personagens, todos competindo em estranheza, comparecem para incrementar as facetas desconcertantes dessa narrativa: O desiludido casal Paul e Katrine (Stanley Knap e Elaine C. Grove), ele viciado em heroína; um cientista alemão (Otto Von Wernherr) no encalço do ser alienígena, que o vigia de longe (assim como aos demais personagens) durante boa parte da metragem do filme; a vizinha Sylvia (Susan Doukas) em cuja casa esse mesmo cientista fica de campana, enquanto ela se incumbe de tentar seduzi-lo (?!); e o filho dela e modelo Jimmy, uma espécie de rival de Margaret que alimenta por ela um desprezo competitivo que pode muito bem ser (ou não) amor não-correspondido, e que, numa manobra extremamente curiosa, vem a ser interpretado, também ele, por Anne Carlisle (acredito que foi inspirada daqui a ideia do filme “Garotas Modernas” em colocar um mesmo intérprete vivenciando dois personagens de índoles e comportamentos distintos, quase opostos). Em “Liquid Sky”, no entanto, esse artifício faz muito mais sentido: Não apenas Margaret e Jimmy são nêmesis assumidos e evidentes um do outro –o que também transforma um na contraparte do outro –como também interagem e até fazem sexo (!!) proporcionando um exercício técnico e virtuosístico da parte dos efeitos especiais e da montagem a presença de ambos em cena, sendo interpretados pela mesma pessoa.

Do início ao fim, a narrativa de Slava Tsukerman alterna momentos e situações envolvendo esses personagens em seus encontros e desencontros aleatórios, não permitindo que uma cena transcorra sem que hajam intervenções de outra, simultaneamente. Num instante temos um grupo dançando num salão e, intercalado a isso, a aproximação do disco voador (cuja importância no enredo mingua em diversas ocasiões); noutro momento, temos uma cena de estupro (!), intercalada pela chegada do cientista alemão em solo americano (!!). Essa montagem inusitada gera uma dúvida no expectador desprevenido: A sequência que está transcorrendo na tela já acabou ou vai continuar daqui a alguns segundos? Não apenas isso mas também a trilha sonora a cargo de Brenda Hutchinson, Clive Smith e do próprio diretor Tsukerman corrobora para o desconforto do público –um retinido intermitente, estridente e irregular feito com sintetizadores que não parece fazer sentido algum.

Uma das tantas obras a aproveitar a estética de “Blade Runner” (lançado naquele mesmo ano, à propósito), mas infinitamente mais alternativo e despojado, “Liquid Sky” ainda assim, escapa de qualquer definição que se tenta fazer dele –é, antes de tudo, uma obra esquizofrênica, afetada, inconstante e desestabilizadora, daquelas que não habita um meio-termo nas impressões do público: Você pode adorá-lo ou abominá-lo, mas será impossível sair indiferente a ele.

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