terça-feira, 30 de agosto de 2022

Benedetta


 Filmes como “Benedetta” são um belo argumento para a existência de autores como o holandês Paul Verhoeven no panorama do cinema atual, tão prejudicado por posturas ideológicas e politicamente corretas –muitos já perceberam a ausência cada vez maior de comédias nos meios de exibição, tão temerosos os realizadores ficaram de ofender a tudo e a todos. E hoje em dia, sabe-se, as pessoas se ofendem por qualquer coisa...

Verhoeven ao que parece, e graças aos céus, não liga para nada disso. Deste seu início de carreira nos anos 1970 até os dias atuais, ele parece perseguir um entendimento humano no qual sua avaliação sobre os infindáveis contextos sobre os quais trabalhou incluem facetas que muitos realizadores (especialmente aqueles atrelados ao modo de trabalho hollywoodiano) preferem  ignorar ou omitir, sobretudo, no que tange à inescapável sexualidade.

“Benedetta” não abre mão de nada disso e ainda se atreve a abordar um tema que nove entre dez diretores tem medo de adentrar: A religião. Sua trama parte de uma história real registrada por documentos católicos datados do Século XVII, na Itália, o julgamento de Benedetta Carlini por crimes de heresia.

Mas, Verhoeven, como todo o bom diretor, começa pelo princípio: A jovem Benedetta mal tinha completado seus catorze anos quando seu pai, um abastado fidalgo da Toscana, a levou para viver em um convento como cumprimento de uma promessa feita à Deus, e na cena que abre o filme, vemos as predisposições da pequena Benedetta a relacionar acontecimentos aparentemente aleatórios favoráveis à intervenções divinas –ou seria mesmo que algo de fora do comum cerca de fato aquela menina?

Essa será a dúvida que atravessará todo o filme, persistindo mesmo nos momentos cruciais –e Paul Verhoeven parece se divertir a valer encontrando formas petulantes, pontuais, elegantes e travessas para fazer a manutenção desse questionamento.

Dezoito anos depois, e agora interpretada pela bela e interessante Virginie Efira (com quem Verhoeven já havia trabalhado em “Elle”), Benedetta é uma das irmãs da abadia comandada pela Madre Superiora Irmã Felicita (Charlotte Rampling), uma freira com sérias e reprimidas ressalvas em confiar nos desígnios de Deus. A fé de Benedetta, por outro lado, é mais que inabalável, ela é metafísica (!): A freira tem visões nas quais enxerga Jesus Cristo como um pastor de cabras humano, palpável e real, seu marido, enfim.

Sejam surtos delirantes, sejam visões celestiais, os delírios de Benedetta a levam à uma condição que as religiosas em geral não são capazes de entender ou explicar –muito menos a Madre Superiora, francamente inclinada a tomar tudo como loucura: Em seus pulsos e tornozelos surgem chagas semelhantes aos estigmas de Cristo. A situação de Benedetta,contudo, leva ela a ganhar uma espécie de cuidadora nas formas da Irmã Bartolomea (Daphné Patakia, sensacional), uma jovem recolhida nas dependências do convento dias antes e que fora estuprada pelo pai e pelos irmãos.

A intimidade resultante entre Benedetta e Bartolomea leva as duas a uma tensão sexual e, logo mais, a um interlúdio lésbico de fato (filmado com a perícia artística e a desenvoltura visual impecáveis que sempre caracterizaram Paul Verhoeven), enquanto que paralelamente, novas visões de Benedetta convencem de tal maneira o reverendo da abadia que ele termina nomeando Benedetta a nova abadessa, removendo o título da Irmã Felicita.

Esse equilíbrio de poder se mostra tênue quando Felicita –impelida pelo trágico suicídio da filha, também ela uma das freiras do convento –foge para Florença e lá alerta o Nuncio Alfonso Giglioli (Lambert Wilson, pernicioso feito uma serpente) sobre os milagres atribuídos à Benedetta e a corrosiva possibilidade de que tudo seja uma encenação. Instalam-se então as circunstâncias para um julgamento onde já não estão mais em jogo os conceitos de verdade ou mentira, mas sim as importâncias políticas que serão mais convenientes à preservação do poder da Igreja.

É bastante irônico, e até admirável, que, ao moldar uma obra com todas as características do violento, tenso e sanguinário subgênero da Inquisição, Paul Verhoeven, sem fazer concessão alguma e sem jamais abrir mão das inquietações tão caras ao seu cinema, tenha conseguido urgir um filme até que leve e agradável de ser acompanhado. Claro que todos os elementos que definem Verhoeven enquanto realizador comparecem –sua ousadia, sua salutar provocação às definições morais, sua empatia pelos corruptos sinceros mais que pelos dissimulados moralistas, e sua disposição em converter sexo e nudez na mais espontânea das ferramentas narrativas –entretanto, ele parece valer-se de “Benedetta” e da formidável história que ela conta para levar uma interessante posição reflexiva ao expectador: A de que, por mais suscetíveis à cada uma das tentações e fraquezas da carne, o ser humano pode, sim, almejar uma proximidade com o Divino, e Dele esperar Sua benção.

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