Filmes como “Benedetta” são um belo argumento para a existência de autores como o holandês Paul Verhoeven no panorama do cinema atual, tão prejudicado por posturas ideológicas e politicamente corretas –muitos já perceberam a ausência cada vez maior de comédias nos meios de exibição, tão temerosos os realizadores ficaram de ofender a tudo e a todos. E hoje em dia, sabe-se, as pessoas se ofendem por qualquer coisa...
Verhoeven ao que parece, e graças aos céus, não
liga para nada disso. Deste seu início de carreira nos anos 1970 até os dias
atuais, ele parece perseguir um entendimento humano no qual sua avaliação sobre
os infindáveis contextos sobre os quais trabalhou incluem facetas que muitos
realizadores (especialmente aqueles atrelados ao modo de trabalho
hollywoodiano) preferem ignorar ou
omitir, sobretudo, no que tange à inescapável sexualidade.
“Benedetta” não abre mão de nada disso e ainda
se atreve a abordar um tema que nove entre dez diretores tem medo de adentrar:
A religião. Sua trama parte de uma história real registrada por documentos
católicos datados do Século XVII, na Itália, o julgamento de Benedetta Carlini
por crimes de heresia.
Mas, Verhoeven, como todo o bom diretor, começa
pelo princípio: A jovem Benedetta mal tinha completado seus catorze anos quando
seu pai, um abastado fidalgo da Toscana, a levou para viver em um convento como
cumprimento de uma promessa feita à Deus, e na cena que abre o filme, vemos as
predisposições da pequena Benedetta a relacionar acontecimentos aparentemente
aleatórios favoráveis à intervenções divinas –ou seria mesmo que algo de fora
do comum cerca de fato aquela menina?
Essa será a dúvida que atravessará todo o
filme, persistindo mesmo nos momentos cruciais –e Paul Verhoeven parece se
divertir a valer encontrando formas petulantes, pontuais, elegantes e travessas
para fazer a manutenção desse questionamento.
Dezoito anos depois, e agora interpretada pela
bela e interessante Virginie Efira (com quem Verhoeven já havia trabalhado em
“Elle”), Benedetta é uma das irmãs da abadia comandada pela Madre Superiora
Irmã Felicita (Charlotte Rampling), uma freira com sérias e reprimidas
ressalvas em confiar nos desígnios de Deus. A fé de Benedetta, por outro lado,
é mais que inabalável, ela é metafísica (!): A freira tem visões nas quais
enxerga Jesus Cristo como um pastor de cabras humano, palpável e real, seu
marido, enfim.
Sejam surtos delirantes, sejam visões
celestiais, os delírios de Benedetta a levam à uma condição que as religiosas
em geral não são capazes de entender ou explicar –muito menos a Madre
Superiora, francamente inclinada a tomar tudo como loucura: Em seus pulsos e
tornozelos surgem chagas semelhantes aos estigmas de Cristo. A situação de
Benedetta,contudo, leva ela a ganhar uma espécie de cuidadora nas formas da
Irmã Bartolomea (Daphné Patakia, sensacional), uma jovem recolhida nas
dependências do convento dias antes e que fora estuprada pelo pai e pelos
irmãos.
A intimidade resultante entre Benedetta e
Bartolomea leva as duas a uma tensão sexual e, logo mais, a um interlúdio
lésbico de fato (filmado com a perícia artística e a desenvoltura visual
impecáveis que sempre caracterizaram Paul Verhoeven), enquanto que
paralelamente, novas visões de Benedetta convencem de tal maneira o reverendo
da abadia que ele termina nomeando Benedetta a nova abadessa, removendo o
título da Irmã Felicita.
Esse equilíbrio de poder se mostra tênue quando
Felicita –impelida pelo trágico suicídio da filha, também ela uma das freiras
do convento –foge para Florença e lá alerta o Nuncio Alfonso Giglioli (Lambert
Wilson, pernicioso feito uma serpente) sobre os milagres atribuídos à Benedetta
e a corrosiva possibilidade de que tudo seja uma encenação. Instalam-se então
as circunstâncias para um julgamento onde já não estão mais em jogo os
conceitos de verdade ou mentira, mas sim as importâncias políticas que serão
mais convenientes à preservação do poder da Igreja.
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