Sempre houve uma estranha mescla entre o artístico e o comercial, o experimental e o clássico, no atrevido cinema perpetrado por Lars VonTrier. Se “Dogville” era –como todos os seus trabalhos –uma obra desafiadora, com elementos considerados ultrajantes por muitos expectadores, ele era também parte de um plano no qual Von Trier vislumbrava toda uma trilogia: Prova disso é que, durante a divulgação no Festival de Cannes, ele pegou a estrela de “Dogville”, Nicole Kidman, de calças curtas ao afirmar, junto dela, que sua personagem protagonizaria outros dois filmes (!).
Nicole, claro, não sabia de nada disso –fato comprovado
pelos sorrisos amarelos dela durante a ocasião –e, sendo a estrela requisitada
que é, não foi deveras possível ao presunçoso Von Trier tê-la de volta para o
que ele idealizou como uma continuação, “Manderlay”, realizado dois anos
depois.
No lugar de Nicole Kidman, Von Trier teve em
suas garras a jovem Bryce Dallas Howard que, a despeito de ser mais nova do que
Nicole, dá sequência a sua personagem, Grace, quase no mesmo instante em que “Dogville”
se acaba: Ao partir, junto de seu pai mafioso (lá, James Caan, aqui, Willem
Dafoe) da sórdida cidadezinha Dogville, onde uma chacina se sucedeu. Vale
lembrar que, tal e qual “Dogville”, este “Manderlay” obedece a mesma orientação
artística e espartana em sua ambientação: Leia-se, os cenários são ‘sugeridos’
em um tablado de aspecto quase teatral onde o público vê quase que só o elenco
a interagir.
Apesar de tudo o que experimentou no filme
anterior –e expectadores escolados em Lars Von Trier, à essas alturas, já sabem
o que esperar dele! –Grace preserva em si um certo idealismo que o diretor
ostenta particular sadismo em confrontar com contradições e desilusões extremas.
Neste novo filme, Grace não tarda a se desvencilhar do pai, cujo niilismo ela
não consegue suportar, e cuja figura que ele representa (a Máfia, de uma autoridade
imposta por meio da força) ela almeja questionar.
A verdade é que Grace, retratada com um
otimismo um tanto ingênuo, acredita num mundo melhor, e que seus atos e
palavras podem perfeitamente materializar esse mundo em algum momento, desde
que inspire pessoas o suficiente.
Ao chegar na comunidade de Manderlay –um lugar
onde escravos e empregados foram abandonados por seus donos e deixados à
própria sorte, entre eles, rostos conhecidos como Lauren Bacall (mas, não
fazendo a mesma personagem de “Dogville”), Jean-Marc Barr (de “Imensidão Azul”
e “Europa”), Chloe Sevingy (de “Kids” e “Psicopata Americano”), Jeremy Davies
(de “O Resgate do Soldado Ryan”), Danny Glover e outros –Grace acredita ter
finalmente encontrado um lugar para exercer sua crença e fazer com que as
pessoas de lá construam um microcosmos perfeito para viverem. Mesmo que
obrigando-as a isso (!). Afinal, de início, é ladeada pelos acapangas
intratáveis de seu pai que Grace se apresenta. A bondade de Grace é, pois, à
sua maneira unilateral e absoluta: Ao dispor dos mafiosos a mando de seu pai, a
garota quer simplesmente ‘obrigar’ as pessoas a fazerem aquilo que ela mesma
julga ser melhor para elas. E não está em questão a opinião deles próprios a
esse respeito (!) –para tanto, Grace se vale de uma insuspeita inaptidão,
travestida de distração e indiferença, para fazer vista grossa ao fato de que,
o que está a exercer, chama-se autoritarismo.
Na repulsa que expressa pela postura do pai,
Grace trilha caminhos tortuosos que a fazem praticar a mesma coerção que ela
reprova. Assim sendo, a analogia que Lars Von Trier quer fazer não poderia ser
mais clara: Em meados de 2005, ano de lançamento do filme, os EUA viviam o auge
da paranóia bélica do governo Bush e de sua incursão pacificadora no Oriente
Médio. Grace é, portanto, o americano convicto de que sua postura é o melhor
para os oprimidos que encontra pela frente, mesmo que os conceitos de opressão
lhe escape aos detalhes em seu ponto de vista abastado e privilegiado. O idealismo
de classe alta de Grace é tão ávido e irreprimível que ela haverá de ajudar a
vida daqueles que sequer aceitariam a ajuda que ela tem a oferecer.
Ao tecer essa crítica tão pessoal quanto
incisiva aos EUA, o diretor Lars Von Trier tira de “Manderlay” as nuances
universais que fizeram “Dogville” ser tão mais contundente, embora a sua
notória desilusão para com a raça humana ainda esteja lá: Basta que os capangas
do pai de Grace virem as costas para que Timothy (Isaach de Bankolé, de “A Maldição da Selva”), o mais marrento dos escravos, se aproveite da situação e
acabe estuprando Grace (!). Um lembrete brutal e degradante de Von Trier de que
a vilania e a maldade jazem dentro até mesmo daqueles por quem se compadece, e
de que, no exercício da bondade, podemos também nos esvair.
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