quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Manderlay


 Sempre houve uma estranha mescla entre o artístico e o comercial, o experimental e o clássico, no atrevido cinema perpetrado por Lars VonTrier. Se “Dogville” era –como todos os seus trabalhos –uma obra desafiadora, com elementos considerados ultrajantes por muitos expectadores, ele era também parte de um plano no qual Von Trier vislumbrava toda uma trilogia: Prova disso é que, durante a divulgação no Festival de Cannes, ele pegou a estrela de “Dogville”, Nicole Kidman, de calças curtas ao afirmar, junto dela, que sua personagem protagonizaria outros dois filmes (!).

Nicole, claro, não sabia de nada disso –fato comprovado pelos sorrisos amarelos dela durante a ocasião –e, sendo a estrela requisitada que é, não foi deveras possível ao presunçoso Von Trier tê-la de volta para o que ele idealizou como uma continuação, “Manderlay”, realizado dois anos depois.

No lugar de Nicole Kidman, Von Trier teve em suas garras a jovem Bryce Dallas Howard que, a despeito de ser mais nova do que Nicole, dá sequência a sua personagem, Grace, quase no mesmo instante em que “Dogville” se acaba: Ao partir, junto de seu pai mafioso (lá, James Caan, aqui, Willem Dafoe) da sórdida cidadezinha Dogville, onde uma chacina se sucedeu. Vale lembrar que, tal e qual “Dogville”, este “Manderlay” obedece a mesma orientação artística e espartana em sua ambientação: Leia-se, os cenários são ‘sugeridos’ em um tablado de aspecto quase teatral onde o público vê quase que só o elenco a interagir.

Apesar de tudo o que experimentou no filme anterior –e expectadores escolados em Lars Von Trier, à essas alturas, já sabem o que esperar dele! –Grace preserva em si um certo idealismo que o diretor ostenta particular sadismo em confrontar com contradições e desilusões extremas. Neste novo filme, Grace não tarda a se desvencilhar do pai, cujo niilismo ela não consegue suportar, e cuja figura que ele representa (a Máfia, de uma autoridade imposta por meio da força) ela almeja questionar.

A verdade é que Grace, retratada com um otimismo um tanto ingênuo, acredita num mundo melhor, e que seus atos e palavras podem perfeitamente materializar esse mundo em algum momento, desde que inspire pessoas o suficiente.

Ao chegar na comunidade de Manderlay –um lugar onde escravos e empregados foram abandonados por seus donos e deixados à própria sorte, entre eles, rostos conhecidos como Lauren Bacall (mas, não fazendo a mesma personagem de “Dogville”), Jean-Marc Barr (de “Imensidão Azul” e “Europa”), Chloe Sevingy (de “Kids” e “Psicopata Americano”), Jeremy Davies (de “O Resgate do Soldado Ryan”), Danny Glover e outros –Grace acredita ter finalmente encontrado um lugar para exercer sua crença e fazer com que as pessoas de lá construam um microcosmos perfeito para viverem. Mesmo que obrigando-as a isso (!). Afinal, de início, é ladeada pelos acapangas intratáveis de seu pai que Grace se apresenta. A bondade de Grace é, pois, à sua maneira unilateral e absoluta: Ao dispor dos mafiosos a mando de seu pai, a garota quer simplesmente ‘obrigar’ as pessoas a fazerem aquilo que ela mesma julga ser melhor para elas. E não está em questão a opinião deles próprios a esse respeito (!) –para tanto, Grace se vale de uma insuspeita inaptidão, travestida de distração e indiferença, para fazer vista grossa ao fato de que, o que está a exercer, chama-se autoritarismo.

Na repulsa que expressa pela postura do pai, Grace trilha caminhos tortuosos que a fazem praticar a mesma coerção que ela reprova. Assim sendo, a analogia que Lars Von Trier quer fazer não poderia ser mais clara: Em meados de 2005, ano de lançamento do filme, os EUA viviam o auge da paranóia bélica do governo Bush e de sua incursão pacificadora no Oriente Médio. Grace é, portanto, o americano convicto de que sua postura é o melhor para os oprimidos que encontra pela frente, mesmo que os conceitos de opressão lhe escape aos detalhes em seu ponto de vista abastado e privilegiado. O idealismo de classe alta de Grace é tão ávido e irreprimível que ela haverá de ajudar a vida daqueles que sequer aceitariam a ajuda que ela tem a oferecer.

Ao tecer essa crítica tão pessoal quanto incisiva aos EUA, o diretor Lars Von Trier tira de “Manderlay” as nuances universais que fizeram “Dogville” ser tão mais contundente, embora a sua notória desilusão para com a raça humana ainda esteja lá: Basta que os capangas do pai de Grace virem as costas para que Timothy (Isaach de Bankolé, de “A Maldição da Selva”), o mais marrento dos escravos, se aproveite da situação e acabe estuprando Grace (!). Um lembrete brutal e degradante de Von Trier de que a vilania e a maldade jazem dentro até mesmo daqueles por quem se compadece, e de que, no exercício da bondade, podemos também nos esvair.

De repercussão bem menos positiva que “Dogville” –o estilo demasiadamente cortante de Lars Von Trier, bem como suas declarações descabidas começavam a testar a paciência de público e crítica –“Manderlay” não despertou interesse o bastante para que ele seu realizador viesse a concluir sua pretensa ‘trilogia’: A terceira parte, fosse com Nicole Kidman, fosse com Bryce Dallas Howard, jamais foi realizada. E pode-se afirmar que, no desconforto proposital evocado pelos dois filmes, não houve muito quem lamentasse esse fato.

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