Foi o suspense “Cova Rasa” –mais do que “Trainspotting”, o bem-sucedido projeto posterior a envolver praticamente toda a mesma equipe –que de fato revelou ao mundo os talentos do diretor Danny Boyle e do ator Ewan McGregor, embora sua repercussão tenha sido, realmente, bem mais modesta. Realizado à imagem e semelhança das obras quintessenciais de Alfred Hitchcook, “Cova Rasa” tratava de tentar responder a uma circunstância muito comum às tramas do mestre do suspense: O que você faria se adquirisse uma mala cheia de dinheiro?
Conhecedor nato e entusiasmado das facetas
pulsantes da ganância humana –de um modo ou de outro, todos os seus filmes
giravam em torno da metamorfose moral acarretada pelo dinheiro –Danny Boyle
confere uma resposta exercitando seu conhecimento de cinema (no qual ainda se
percebe um êxtase juvenil), o inconformismo que o tornou reconhecido (o que
proporciona ao filme um teor tremendamente ácido) e uma empolgação artística
que, de modo geral, contorna todos os problemas e limitações de sua obra –e,
como todo trabalho inicial, ela padece de diversos lapsos que, com o tempo, ele
foi aprendendo a lapidar.
Dotados de uma arrogância e uma petulância
tipíca dos jovens, os ingleses David (Christopher Eccleston), Alex (Ewan
McGregor) e Juliet (Kerry Fox, de “Um Anjo Em Minha Mesa”) moram num
apartamento no subúrbio de Londres com um quarto disponível. E estão dispostos
a alugá-lo àquele que se enquadrar nas exigências do trio. Leia-se, que
aparente ser, no mínimo, alguém cosmopolita como eles: A sucessão de
entrevistas aos candidatos que se segue é temperada com o inclemente sarcasmo
que eles dedicam à tudo e à todos.
E já ali, o diretor Boyle e o roteirista John
Hodge acrescentam inteligentes observações subliminares de seus três
protagonistas, sejam elas individualmente (David é reservado; Alex é eufórico;
e Juliet, o ponto de equilíbrio), sejam coletivamente (são, afinal, um pequeno
grupo que, tal e qual qualquer jovem, se presume unido, inseparável, invencível
e de lealdade eterna uns com os outros). Até que então surge, enfim o candidato
ideal: Um homem poucos anos mais velho, solteiro, sofisticado, de prosa
convincente e postura impressionante. Alguém que imediatamente surpreende os
jovens que, em sua soberba, julgavam-se incapazes de serem surpreendidos.
O filme impiedoso de Boyle tratará de provar o
oposto: Quando passa a ocupar o quarto vago, o novo inquilino mal tem tempo de conviver
com seus colegas e já aparece morto de overdose (!). Junto dele, uma mala
carregada de dinheiro (!!).
Os três jovens em princípio vivenciam as fases
habituais dessa situação: Ficam desconfiados, ponderam as possibilidades até
obviamente se decidirem por ficar com toda a grana, ao que logo se segue um
momento de júbilo.
É quando, na revelação gradual de todo o ônus,
Danny Boyle vai desconstruindo com certo sadismo a fachada de soberba dos
jovens ingleses: O dinheiro tem, claro, uma origem criminosa e não tardam a aparecerem
indivíduos suspeitos no encalço dele. A surpresa, contudo, é o inesperado ímpeto
de violência com o qual David rechaça os novos inimigos.
Descoberta sua propensão à violência, David não
está mais disposto à ser a mesma ponta submissa do triângulo de antes e, um
tanto impelido pela paranóia, passa a apresentar um comportamento cada vez mais
estranho –refugia-se no sotão, de onde faz buracos que lhe dão visão de quase
todo o apartamento, inclusive dos amigos nos quais já não confia tanto –até mesmo
com relação à Juliet, com quem até havia ensaiado um pequeno flerte.
A tensão resultante modifica a dinâmica tão
feliz, unida e leal do trio visto no início e Boyle acrescenta ao andamento
rumo ao desfecho uma inclinação pontual de violência e sanguinolência que soa
perfeitamente como uma continuidade natural ao estilo de Hitchcook, redefinido
para uma novo cinema inglês que emergia naqueles anos 1990.
Nenhum comentário:
Postar um comentário