sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Cova Rasa


 Foi o suspense “Cova Rasa” –mais do que “Trainspotting”, o bem-sucedido projeto posterior a envolver praticamente toda a mesma equipe –que de fato revelou ao mundo os talentos do diretor Danny Boyle e do ator Ewan McGregor, embora sua repercussão tenha sido, realmente, bem mais modesta. Realizado à imagem e semelhança das obras quintessenciais de Alfred Hitchcook, “Cova Rasa” tratava de tentar responder a uma circunstância muito comum às tramas do mestre do suspense: O que você faria se adquirisse uma mala cheia de dinheiro?

Conhecedor nato e entusiasmado das facetas pulsantes da ganância humana –de um modo ou de outro, todos os seus filmes giravam em torno da metamorfose moral acarretada pelo dinheiro –Danny Boyle confere uma resposta exercitando seu conhecimento de cinema (no qual ainda se percebe um êxtase juvenil), o inconformismo que o tornou reconhecido (o que proporciona ao filme um teor tremendamente ácido) e uma empolgação artística que, de modo geral, contorna todos os problemas e limitações de sua obra –e, como todo trabalho inicial, ela padece de diversos lapsos que, com o tempo, ele foi aprendendo a lapidar.

Dotados de uma arrogância e uma petulância tipíca dos jovens, os ingleses David (Christopher Eccleston), Alex (Ewan McGregor) e Juliet (Kerry Fox, de “Um Anjo Em Minha Mesa”) moram num apartamento no subúrbio de Londres com um quarto disponível. E estão dispostos a alugá-lo àquele que se enquadrar nas exigências do trio. Leia-se, que aparente ser, no mínimo, alguém cosmopolita como eles: A sucessão de entrevistas aos candidatos que se segue é temperada com o inclemente sarcasmo que eles dedicam à tudo e à todos.

E já ali, o diretor Boyle e o roteirista John Hodge acrescentam inteligentes observações subliminares de seus três protagonistas, sejam elas individualmente (David é reservado; Alex é eufórico; e Juliet, o ponto de equilíbrio), sejam coletivamente (são, afinal, um pequeno grupo que, tal e qual qualquer jovem, se presume unido, inseparável, invencível e de lealdade eterna uns com os outros). Até que então surge, enfim o candidato ideal: Um homem poucos anos mais velho, solteiro, sofisticado, de prosa convincente e postura impressionante. Alguém que imediatamente surpreende os jovens que, em sua soberba, julgavam-se incapazes de serem surpreendidos.

O filme impiedoso de Boyle tratará de provar o oposto: Quando passa a ocupar o quarto vago, o novo inquilino mal tem tempo de conviver com seus colegas e já aparece morto de overdose (!). Junto dele, uma mala carregada de dinheiro (!!).

Os três jovens em princípio vivenciam as fases habituais dessa situação: Ficam desconfiados, ponderam as possibilidades até obviamente se decidirem por ficar com toda a grana, ao que logo se segue um momento de júbilo.

É quando, na revelação gradual de todo o ônus, Danny Boyle vai desconstruindo com certo sadismo a fachada de soberba dos jovens ingleses: O dinheiro tem, claro, uma origem criminosa e não tardam a aparecerem indivíduos suspeitos no encalço dele. A surpresa, contudo, é o inesperado ímpeto de violência com o qual David rechaça os novos inimigos.

Descoberta sua propensão à violência, David não está mais disposto à ser a mesma ponta submissa do triângulo de antes e, um tanto impelido pela paranóia, passa a apresentar um comportamento cada vez mais estranho –refugia-se no sotão, de onde faz buracos que lhe dão visão de quase todo o apartamento, inclusive dos amigos nos quais já não confia tanto –até mesmo com relação à Juliet, com quem até havia ensaiado um pequeno flerte.

A tensão resultante modifica a dinâmica tão feliz, unida e leal do trio visto no início e Boyle acrescenta ao andamento rumo ao desfecho uma inclinação pontual de violência e sanguinolência que soa perfeitamente como uma continuidade natural ao estilo de Hitchcook, redefinido para uma novo cinema inglês que emergia naqueles anos 1990.

Se não era uma obra especialmente brilhante, “Cova Rasa” foi o início promissor para uma equipe (capitaneada por Boyle) que entregaria produções cada vez mais arrojadas e cinematograficamente superiores no futuro.

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