Já de arrancada percebemos o grande acerto que foi os realizadores da animação “Homem-Aranha Através do Aranhaverso” terem dado mais espaço à personagem Spider-Gwen (voz de Hailee Steinfeld). Vinda de uma realidade alternativa onde Peter Parker morreu –e quem terminou convertendo-se em Mulher-Aranha foi ela, Gwen Stacy –a Spider-Gwen (como passou a ser chamada pelos fãs) logo tornou-se favorita do público nos quadrinhos, tradição que se manteve ao aparecer nos cinemas em “Homem-Aranha No Aranhaverso”, que esta nova animação trata de continuar. Todavia, Gwen não é a única protagonista deste arrojado longa-metragem de animação –desde já, grande candidato ao Oscar da categoria no ano que vem –há também, Miles Morales (voz de Shameik Moore).
Transformado em Homem-Aranha após os
contratempos que levaram à morte de Peter Parker em sua realidade, Miles
vivenciou todo o arco narrativo de aprendizado e descoberta do herói no filme
anterior –agora, ele está tentando ainda adaptar-se à nova vida, e às novas
mudanças que não param de chegar: Os pais de Miles –o pai, recentemente
promovido à capitão de polícia; a mãe, uma enfermeira que imigrou de Porto Rico
–relutam em deixar que Miles explore todo seu potencial indo estudar numa
faculdade em Nova Jersey, longe do Brooklyn, onde acreditam mantê-lo sempre por
perto. Essa dramaturgia, até bastante importante para o filme e o personagem,
não tem muito tempo para transcorrer quando uma inusitada ameaça se manifesta:
Trata-se do Mancha (!?), cientista capaz de materializar buracos de teleporte
aqui e ali, e que é um dos vilões mais subestimados e ridicularizados do
Homem-Aranha nos quadrinhos. Contudo, a criatividade irreprimível dos diretores
Joaquim dos Santos, Justin K. Thompson e Kemp Powers, e dos roteiristas Phil
Lord, Christopher Miller e David Callaham transforma Mancha num contratempo que
começa, sim, atrapalhado e desengonçado (ele mal consegue controlar os poderes
que ganhou por puro acaso no clímax do filme anterior), no entanto, a medida
que a narrativa desvenda uma amplitude maior de seus poderes, descobrimos, ao
lado de Miles, uma periculosidade que pode acabar colocando em risco todo o
Multiverso.
Na sequência desses acontecimentos, Miles
reencontra Gwen, por quem teve uma queda durante sua breve interação no outro
filme –sendo personagens vindos de universos distintos, não havia, para os
dois, maiores esperanças de se verem uma outra vez, ainda assim, Gwen acaba
aparecendo no quarto de Miles. As explicações são breves, mas pontuais: Gwen
(como vemos no prólogo arrebatador deste filme) foi recrutada por Miguel O’Hara
(voz de Oscar Isaac), um Homem-Aranha taciturno e autoritário vindo do ano de
2099, para compor um numeroso grupo formado por versões alternativas do
Homem-Aranha vindo de várias partes do assim chamado Aranhaverso. A missão
deles: Impedir que indivíduos desgarrados de suas realidades originais (pelos
eventos mostrados no filme anterior) comprometam a existência dos vastos
universos provocando a destruição de todos eles.
Dentro dessa curiosa lógica multiversal, Miles
Morales ocupa uma posição inesperada; ao que tudo indica, nunca foi o destino
dele se tornar um Homem-Aranha –tanto é que a aranha radioativa que mordeu-o,
dando-lhe seus poderes, veio por acidente de uma outra realidade. Para Miguel
O’Hara, Miles é, portanto, uma anomalia, das tantas que ele impôs a si próprio
a missão de corrigir.
É curioso notar que, no empuxo proporcionado a
seus muitos e notáveis personagens, “Homem-Aranha Através do Aranhaverso” é um
filme sobre paternidade: É sobre o Capitão Stacy, pai de Gwen, e sobre o seu
dilema de perseguir a própria filha por não saber ser ela a vigilante mascarada
Mulher-Aranha; é sobre o Capitão Morales que, como policial, tem a relutante
ajuda no Homem-Aranha para lutar contra o crime, sem saber que ele é seu filho,
Miles, cujos segredos dessa vida dupla, aos poucos vão minando a relação que
tinham; e é também sobre o veterano e fora de forma Peter Parker (do filme
original) que redescobriu sua satisfação para viver (e seguir sendo
Homem-Aranha) ao se tornar pai da pequenina May Day e sobre o próprio Miguel
O’Hara, alimentado e impulsionado pela amargura de ter perdido mulher e filho
devido a um erro multiversal –e disposto a não deixar que esse mesmo erro se suceda
com mais ninguém novamente.
É um primor que “Homem-Aranha Através do
Aranhaverso” traga tantos personagens e que, mesmo assim, todos encontrem um
momento satisfatório de desenvolvimento que os fazem mais profundos do que
inicialmente se presume que eles sejam, e mais notável ainda que esse
desenvolvimento se dê por meio de um tema que parece conectar a todos eles numa
única e emocionante unidade narrativa –a despeito de manter o mesmo jogo
assombroso de cores (os estilos de animação distintos variam conforme os
personagens de diferentes universos se apresentam), as mesmas cenas alucinantes
de ação do original (ainda mais inquietas, estilizadas e vertiginosas) e a
mesma cinematografia pulsante e original (inclusive, com um trilha sonora que
oscila descontraidamente entre funk, soul, rap e hip hop),
“Homem-Aranha Através do Aranhaverso” surpreende o expectador ao revelar-se
inesperadamente intimista –são as particularidades de ordem pessoal e os
problemas emotivos, familiares e sentimentais de seus personagens, construídos
com zelo e delicadeza fora do comum, que representam, de fato, o coração do
filme, e o fazem ser assim tão especial.
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