Nos primórdios de sua história como estúdio de animação, a Walt Disney valeu-se de seu maior e mais retumbante sucesso –o inovador longa-metragem animado “Branca de Neve e Os Sete Anões”, de 1937 –para revitalizar os números de sua bilheteria por meio de sucessivas reprises cinematográficas ao longo do Século XX, algo que também ajudou a transformar aquela animação numa lembrança indefectível para gerações inteiras de crianças. Contudo, hoje os tempos são outros. Dinheiro, ao que parece, não é mais problema aos cofres dos Estúdios Disney, entre os mais poderosos e influentes na Hollywood atual. Logo, os relançamentos de clássicos do passado não fazem mais sentido para os executivos donos do dinheiro e das decisões. Ao invés de celebrar a excelência de seu legado, atitude que os relançamentos de “Branca de Neve” e outros clássicos também proporcionava, os Estúdios Disney querem agora reciclá-lo: Toda uma nova geração de expectadores, desde pelo menos “Alice No País das Maravilhas”, de Tim Burton, lançado em 2010, está de fato tendo contato com os clássicos animados que transformaram a Disney no que ela é hoje, só que, não no formato em que eles se consagraram, mas sim como versões live-actions proporcionadas pelos mais apurados efeitos visuais de última geração, capazes de converter em encenações de carne-e-osso o que outrora somente a animação era capaz de mostrar.
E é claro que os primeiros da fila foram as
mais ressonantes e significativas realizações do estúdio. Dentre elas, poucas
têm a importância, a relevância e o primor capaz de igualar “A Pequena Sereia”,
de 1989. Concebido num período em que a Disney experimentou altos e baixos
(mais baixos do que altos...) em sua administração, a animação obteve tamanho
êxito que restabeleceu o status de maior estúdio de animação do mundo, o qual,
desde então, a Disney soube manter entre muitos sucessos e poucos fracassos.
Coube ao diretor Rob Marshall (do ganhador do
Oscar “Chicago”) o desafio de recriar, na medida do possível, a magia
incomensurável do longa animado de John Musker e Ron Clements, e este novo “A
Pequena Sereia” –como, aliás, muitos dos live-actions
da Disney –já começa com a desoladora sensação de que este objetivo é, assim,
inatingível. O tempo todo, do início ao fim, o roteiro de Jane Goldman e David
Magee cai na mesma armadilha que os outros live-actions
antes deles caíram; o de meramente acrescentar novas tonalidades à trama já
conhecida, corrigindo meras imperfeições pontuais minúsculas que nada
interferiam na excelência do todo, e refazendo com desleixo toda uma narrativa
que, antes, pulsava de ímpeto criativo. Assim, somos apresentados, ao mundo
submarino habitado por Ariel (Halle Bailey, uma interessantíssima atriz de
etnia afro-descendente, diferente da personagem animada, mas que revela-se uma
bela escolha), filha mais jovem do Rei Tritão (Javier Barden, numa ótima
recriação, na medida do possível, do imponente personagem animado). A dinâmica
entre Ariel e seu pai é espelhada na animação: Tritão, severamente indisposto
com o mundo da superfície (neste filme, é revelado que os humanos foram
responsáveis pela morte de sua esposa) enxerga a todos com desconfiança e
hostilidade, logo é com um misto de aflição e intolerância paterna que ele
assiste, perplexo, ao fascínio incontornável que Ariel desenvolveu por aquele
mundo, a ponto de montar uma espécie de coleção dos utensílios humanos que
eventualmente vão parar nas águas dos oceanos.
Ao conhecer e salvar a vida do Príncipe Eric
(Jonah Hauer-King, da série “Teto Para Dois”), Ariel toma a decisão definitiva
de tentar ingressar naquele mundo para sempre: Ela forja um pacto com sua tia
renegada Ursula, a Bruxa do Mar (Melissa McCarthy, numa personagem inspirada na
persona do travesti Divine, de “Pink Flamingos”) no qual troca sua voz de sereia pela forma terrena de mulher.
Entretanto, sem saber, Ariel estará corroborando ainda mais suas complicações
junto à ardilosa bruxa: Tendo o prazo de três dias para obter de Eric um beijo
de amor verdadeiro –e assim evitar de transformar-se em prisioneira da bruxa
–Ariel abre mão justamente do único meio que Eric teria para reconhecê-la; do
salvamento, no qual vislumbrou a mulher que deseja desposar, Eric só se recorda
de sua voz bela e encantadora!
É a partir desses expedientes –basicamente, os
mesmos manejados com habilidade lendária pela animação –que o filme de Rob
Marshall se incumbe, adicionando à eles os efeitos visuais de ponta que recriam
com fotogenia inacreditável cenários inteiros, cenas de ação alucinantes, além
de personagens essenciais, como o caranguejo Sebastião (voz de Daveed Diggs) e
o peixe Linguado (voz do garoto Jacob Trambley), embora tais personagens, no
realismo animal com que a encenação live-action
os materializa, percam sua expressividade da animação. Rob Marshall emprega com
iniciativa e propriedade toda sua notória experiência nas sequências musicais
(às quais ganham o acréscimo de uma canção exclusiva –e um bocado
desnecessária... –para o Príncipe Eric), onde percebemos o talento imenso de
Halle Bailey como cantora.
Competência visual e perfeição técnica não são,
deveras, os problemas deste longa-metragem, contudo, os live-actions da Disney potencializam ainda mais uma circunstância
que sempre incomodou em casos, por exemplo, de refilmagens: A eterna questão se
é, de fato, necessária a recriação de uma obra que já soava competente e bem
realizada antes. As refilmagens (existentes desde os primórdios do próprio
cinema) se provaram válidas em casos, nos quais, uma repaginação técnica,
artística e/ou temática tornava relevante a oportunidade de recontar aquelas
histórias, no entanto, no caso dos live-actions
da Disney, a norma geral, parece ser justamente a preservação dos elementos das
obras clássicas como eles são –e tentar fugir desse caminho resulta ainda mais
catastrófico, como atestou “Mulan” –o que nos leva à outra questão: Por que
refazê-los tendo os ótimos exemplares originais à disposição, a não ser por
conta da contumaz e alardeada crise de imaginação do cinema comercial
hollywoodiano?
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