quinta-feira, 15 de junho de 2023

A Pequena Sereia


 Nos primórdios de sua história como estúdio de animação, a Walt Disney valeu-se de seu maior e mais retumbante sucesso –o inovador longa-metragem animado “Branca de Neve e Os Sete Anões”, de 1937 –para revitalizar os números de sua bilheteria por meio de sucessivas reprises cinematográficas ao longo do Século XX, algo que também ajudou a transformar aquela animação numa lembrança indefectível para gerações inteiras de crianças. Contudo, hoje os tempos são outros. Dinheiro, ao que parece, não é mais problema aos cofres dos Estúdios Disney, entre os mais poderosos e influentes na Hollywood atual. Logo, os relançamentos de clássicos do passado não fazem mais sentido para os executivos donos do dinheiro e das decisões. Ao invés de celebrar a excelência de seu legado, atitude que os relançamentos de “Branca de Neve” e outros clássicos também proporcionava, os Estúdios Disney querem agora reciclá-lo: Toda uma nova geração de expectadores, desde pelo menos “Alice No País das Maravilhas”, de Tim Burton, lançado em 2010, está de fato tendo contato com os clássicos animados que transformaram a Disney no que ela é hoje, só que, não no formato em que eles se consagraram, mas sim como versões live-actions proporcionadas pelos mais apurados efeitos visuais de última geração, capazes de converter em encenações de carne-e-osso o que outrora somente a animação era capaz de mostrar.

E é claro que os primeiros da fila foram as mais ressonantes e significativas realizações do estúdio. Dentre elas, poucas têm a importância, a relevância e o primor capaz de igualar “A Pequena Sereia”, de 1989. Concebido num período em que a Disney experimentou altos e baixos (mais baixos do que altos...) em sua administração, a animação obteve tamanho êxito que restabeleceu o status de maior estúdio de animação do mundo, o qual, desde então, a Disney soube manter entre muitos sucessos e poucos fracassos.

Coube ao diretor Rob Marshall (do ganhador do Oscar “Chicago”) o desafio de recriar, na medida do possível, a magia incomensurável do longa animado de John Musker e Ron Clements, e este novo “A Pequena Sereia” –como, aliás, muitos dos live-actions da Disney –já começa com a desoladora sensação de que este objetivo é, assim, inatingível. O tempo todo, do início ao fim, o roteiro de Jane Goldman e David Magee cai na mesma armadilha que os outros live-actions antes deles caíram; o de meramente acrescentar novas tonalidades à trama já conhecida, corrigindo meras imperfeições pontuais minúsculas que nada interferiam na excelência do todo, e refazendo com desleixo toda uma narrativa que, antes, pulsava de ímpeto criativo. Assim, somos apresentados, ao mundo submarino habitado por Ariel (Halle Bailey, uma interessantíssima atriz de etnia afro-descendente, diferente da personagem animada, mas que revela-se uma bela escolha), filha mais jovem do Rei Tritão (Javier Barden, numa ótima recriação, na medida do possível, do imponente personagem animado). A dinâmica entre Ariel e seu pai é espelhada na animação: Tritão, severamente indisposto com o mundo da superfície (neste filme, é revelado que os humanos foram responsáveis pela morte de sua esposa) enxerga a todos com desconfiança e hostilidade, logo é com um misto de aflição e intolerância paterna que ele assiste, perplexo, ao fascínio incontornável que Ariel desenvolveu por aquele mundo, a ponto de montar uma espécie de coleção dos utensílios humanos que eventualmente vão parar nas águas dos oceanos.

Ao conhecer e salvar a vida do Príncipe Eric (Jonah Hauer-King, da série “Teto Para Dois”), Ariel toma a decisão definitiva de tentar ingressar naquele mundo para sempre: Ela forja um pacto com sua tia renegada Ursula, a Bruxa do Mar (Melissa McCarthy, numa personagem inspirada na persona do travesti Divine, de “Pink Flamingos”) no qual troca sua voz de sereia pela forma terrena de mulher. Entretanto, sem saber, Ariel estará corroborando ainda mais suas complicações junto à ardilosa bruxa: Tendo o prazo de três dias para obter de Eric um beijo de amor verdadeiro –e assim evitar de transformar-se em prisioneira da bruxa –Ariel abre mão justamente do único meio que Eric teria para reconhecê-la; do salvamento, no qual vislumbrou a mulher que deseja desposar, Eric só se recorda de sua voz bela e encantadora!

É a partir desses expedientes –basicamente, os mesmos manejados com habilidade lendária pela animação –que o filme de Rob Marshall se incumbe, adicionando à eles os efeitos visuais de ponta que recriam com fotogenia inacreditável cenários inteiros, cenas de ação alucinantes, além de personagens essenciais, como o caranguejo Sebastião (voz de Daveed Diggs) e o peixe Linguado (voz do garoto Jacob Trambley), embora tais personagens, no realismo animal com que a encenação live-action os materializa, percam sua expressividade da animação. Rob Marshall emprega com iniciativa e propriedade toda sua notória experiência nas sequências musicais (às quais ganham o acréscimo de uma canção exclusiva –e um bocado desnecessária... –para o Príncipe Eric), onde percebemos o talento imenso de Halle Bailey como cantora.

Competência visual e perfeição técnica não são, deveras, os problemas deste longa-metragem, contudo, os live-actions da Disney potencializam ainda mais uma circunstância que sempre incomodou em casos, por exemplo, de refilmagens: A eterna questão se é, de fato, necessária a recriação de uma obra que já soava competente e bem realizada antes. As refilmagens (existentes desde os primórdios do próprio cinema) se provaram válidas em casos, nos quais, uma repaginação técnica, artística e/ou temática tornava relevante a oportunidade de recontar aquelas histórias, no entanto, no caso dos live-actions da Disney, a norma geral, parece ser justamente a preservação dos elementos das obras clássicas como eles são –e tentar fugir desse caminho resulta ainda mais catastrófico, como atestou “Mulan” –o que nos leva à outra questão: Por que refazê-los tendo os ótimos exemplares originais à disposição, a não ser por conta da contumaz e alardeada crise de imaginação do cinema comercial hollywoodiano?

Ao que parece, tão cedo os Estúdios Disney não encontrarão uma resposta...

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