quinta-feira, 8 de junho de 2023

Wandinha - 1ª Temporada


 Desde os primórdios, a cultura pop sempre teve o hábito de canibalizar a si mesma. Podemos tomar como exemplo esta série de sucesso da Netflix: Os personagens da “Família Addams” foram introduzidos ao mundo pela primeira vez, por seu criador, o cartunista Charles Samuel Addams em 1932 na revista The New Yorker, depois migraram para outras mídias –quadrinhos, animações televisivas, séries live-actions de TV –até chegarem aos cinemas, primeiramente, em um filme de 1977, não muito bem-sucedido, e no longa-metragem de 1991, maravilhosamente bem-realizado pelo diretor Barry Sonnenfeld, tanto que logo ganhou uma continuação em 1993. De lá pra cá, outras versões se seguiram, inclusive uma recente animação, mas é, de longe, com os dois longa-metragens de Barry Sonnenfeld que esta série mais dialoga em termos de estilo e narrativa.

Para a direção (pelo menos, da maior parte de seus oito episódios) foi recrutado o esteta Tim Burton que, convenhamos, sempre foi a pessoa mais adequada para lidar com o material: Sua identidade visual, com pendor apaixonado pelo sombrio e por elementos que remetem ao Halloween, e seu gosto indiscutível por criaturas oriundas do horror fantástico caem como uma luva à proposta da série.

Nos filmes, a garota Wandinha Addams (lá, coadjuvante, aqui, por uma astuciosa manobra a fim de atrair o público adolescente, protagonista) era interpretada, com bastante propriedade por Christina Ricci (dona, aqui, de um papel de considerável destaque), na série concebida pela Netflix, quem assume o papel de Wandinha é a jovem Jenna Ortega, que embora tenha 20 anos vive uma personagem com 16 anos de idade; nos filmes, Christina Ricci viveu Wandinha (ou Wednesday, no original) com 11 anos (em 1991) e 13 (em 1993), todavia, aqui na série, a faixa etária da personagem foi elevada na intenção de tornar propício toda sorte de narrativa jovem a envolver até mesmo flertes românticos e outras peculiaridades –é, afinal, a cultura pop canibalizando a si mesma como comentado acima.

Do alto das celeumas eventuais da adolescência –ainda mais problemáticas devido à sua inclinação radical à morbidez, ao comportamento gótico e sombrio, e à uma atitude incontornavelmente antissocial –Wandinha Addams, filha mais velha do casal Gomez e Mortícia Addams (Luis Gusmán e Catherine Zeta-Jones, ambos pontas luxuosíssimas) é despachada da escola convencional em que estudava –na qual, ao vingar-se de um bullying sofrido pelo irmão, jogou piranhas na piscina dos atletas de natação (!) –para a pouco ortodoxa Nevermore High School, lugar frequentado exclusivamente por indivíduos assim chamados ‘excluídos’ justamente por possuírem, todos, alguma particularidade macabra com um pé no sobrenatural.

Uma vez lá –e absolutamente à contra-gosto –Wandinha ensaia uma tentativa de se adaptar ao lugar; o que inclui sessões de terapia com a psicóloga local Dra. Kinbott (Riki Lindhome, de “A Troca”) e a marcação cerrada da diretora Weems (Gwendoline Christie, de “Jogos Vorazes-A Esperança”). Contudo, a razão pela qual Wandinha termina realmente ficando é o fato de inesperadas mortes começarem a se suceder nas redondezas. Aparentemente há um monstro à solta, e os preconceituosos da região, entre os quais, o próprio xerife local (Jamie McShane, de “Garota Exemplar”), estão ávidos por apontar os dedos na direção dos estudantes de Nevermore. Cabe, portanto, à Wandinha a tarefa de empregar suas habilidades dedutivas e seu raciocínio lógico –únicas características que a fazem demonstrar um mínimo de interesse na interação humana –para desvendar esse mistério e descobrir quem está por trás das ações do monstro e porque.

No decurso dessa investigação a la Scooby-Doo, Wandinha acaba também esbarrando em inevitáveis dilemas de natureza adolescente como as idas e vindas na sua amizade com a colega de quarto Enid (Emma Myers), a interação, ora cheia de camaradagem, ora carregada de antagonismo, com os demais ‘excluídos’; e o inusitado triângulo amoroso entre ela, o hesitante Xavier (Percy Hynes White) e o filho do xerife, Tyler (Hunter Doohan). Outros personagens, diretamente relacionados às criações de Charles Samuel Addams que também marcam presença são Mãozinha (um prodígio dos efeitos visuais da série) e o Tio Chico (Fred Armisen, de “Os Delírios de Consumo de Becky Bloom”), fazendo participação especial em um dos episódios.

Unindo habilmente o teor macabro com o humor negro –mescla tão habitual e orgânica na obra de Burton –a série não esconde o direcionamento convicto às platéias mais jovens, às quais certamente não incomodarão as pouco apropriadas inserções de romance juvenil e drama adolescente na narrativa. Se na maior parte do tempo tudo em “Wandinha” flui com desenvoltura e relativa graça, isso se dá, em grande medida, ao ótimo trabalho do elenco em geral e de Jenna Ortega em particular, tirando de letra uma atuação à qual, por muito tempo esteve associada a própria Christina Ricci como uma intérprete perfeita: A Wandinha de Jenna Ortega entrega o mesmo desdém soturno pelas balbuciantes nuances da interação humana, aparentando uma flagrante inexpressividade, mas, abrilhantada por uma atuação que não deixa de evidenciar ao expectador as sutis mudanças internas de humor da personagem e, no que pode ser visto quase como um milagre, mesmo diante de uma perene apatia, conquistar o público com um insuspeito carisma.

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