terça-feira, 22 de agosto de 2023

Bubba Ho-Tep


 Nem só de “Fantasma” vive a filmografia de Don Coscarelli. Apreciador de miscelâneas de gênero –como atestam obras cheias de personalidade como “O Senhor das Feras” ou o posterior “John Morre No Final” –Coscarelli extraiu do irônico conto de Joe R. Landsdale (parte de uma curiosa antologia literária que reunia histórias a envolver Elvis Presley, “The King Is Dead-Tales Of Elvis Post-Mortem”) um híbrido vistoso, espirituoso e pleno de inventividade a reunir proporções quase equivalentes de terror e comédia.

E a ironia espumante que “Bubba Ho-Tep” exerce ronda, sobretudo, seu protagonista: Numa atuação feita de amor incondicional (e até um viés inesperadamente comovente) Bruce Campbell, adornado de uma maquiagem que o envelhece, é Elvis Presley, ou melhor dizendo, Sebastian Haff (!) –no improvável infortúnio que relata à sua enfermeira (Ella Joyce), ele decidiu num rompante, ainda quando se achava no auge do sucesso, trocar de lugar brevemente com um impecável imitador, Sebastian Haff, e assim viver algum tempo longe da fama asfixiante, entretanto, ao mesmo tempo que ele perdeu , num incêndio acidental, o contrato que provava seu quiproquó, o seu sósia, ainda em seu lugar, sofreu a overdose que, aos olhos de todo o mundo, levou-o a ser dado como morto.

Assim, o agora idoso Elvis Presley, sob a identidade forçada de Sebastian Haff, amarga seus dias na Casa de Repouso Mud Creek, junto do melhor amigo Jack (Ossie Davis, de “12 Homens e Uma Sentença”), por sua vez, um interno que afirma ser o ex-presidente John F. Kennedy, convertido em um negro (!?) e deixado lá devido à uma conspiração da CIA (!!!). Essa dupla inusitada logo ganha um antagonista igualmente inusitado para enfrentar: Vinda do Egito Antigo e extraviada pelos EUA num flashback gaiato, a múmia de um faraó maligno chamado Bubba Ho-Tep passa a sugar a alma, a energia vital, das pessoas vivas ao seu redor –e, devido ao fato de tais pessoas serem os hóspedes de uma casa de repouso, e não haver assim tanto ‘energia vital’ a ser consumida, a entidade mal-assombrada acaba enfileirando vítima atrás de vítima nas noites que se seguem.

Nem mesmo os lesados funcionários da agência funerária (Daniel Roebuck e Daniel Schweiger) se dão conta do excesso de fatalidade, afinal, é de se esperar que pessoas velhas internadas em uma casa de repouso encontrem a morte com relativa frequência...

Resta à Elvis e Jack pesquisarem um meio para eliminar Bubba Ho-Tep no famigerado “Livro das Almas”, antes que se tornem, eles próprios, as vítimas do devorador de almas –e se há algo que o Rei do Rock não está disposto a admitir é o atrevimento de um ser sobrenatural querendo tirar a alma que lhe pertence!

Por vezes notável em sua originalidade, “Bubba Ho-Tep”, na nitidez de seu baixo-orçamento, não esconde o fato de ser realizado por um mestre da categoria: Vindo da mesma escola –hoje, tida como clássica –que moldou realizadores como Sam Raimi, Joel e Ethan Coen e outros diretores que, em meados dos anos 1980, despontaram como forças criativas no cinema independente de baixo-orçamento norte-americano, Don Coscarelli emula uma narrativa de expedientes tradicionais e infalíveis do terror, ao mesmo tempo que respalda tudo numa atmosfera de diversão auto-consciente, tornando seu filme um deleite do início ao fim. Outros diretores cederiam facilmente ao absurdo, transformando tudo numa farsa de humor intermitente, ou dariam um registro inapropriado à assombração que dá título ao filme, não Coscarelli: Como já havia demonstrado na “Saga Fantasma”, seu controle sobre as mais inusitadas variações de sua premissa pulsa um conhecimento narrativo primoroso a envolver com um carinho desigual a jornada de seus heróis geriátricos contra uma entidade cuja maldade a despiu de qualquer identidade –a múmia Bubba Ho-Tep, na trilha de mortes sobrenaturais que a levou do Egito até os EUA, vai agregando características que lhe roubam, aos poucos, sua procedência egípcia.

Mas, a inspiração mais inconteste, Coscarelli reserva para seu protagonista: Interpretado com fina ironia por Bruce Campbell (um ótimo ator subaproveitado no cinema mainstream), Elvis é um personagem hilário em sua insolência, supino em seu heroísmo e, ao final, tocante em sua despedida.

Eis um filme do qual se espera sustos e risadas, mas se ganha também cinema de boa qualidade.

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