Contrariando a sisudez de parte da crítica que diz haver uma fórmula mercadológica para todos os produtos de conteúdo exclusivo da plataforma,“O Poço” da Netflix faz, por vezes, lembrar o conceito de “Cubo”, de Vincenzo Natali, cuja premissa também gira em torno de uma prisão mirabolante dotada de normas internas particulares que se revelavam desafiadoras às aptidões de seus prisioneiros. Entretanto, se “Cubo” era abertamente um criativo exercício de suspense, “O Poço” –cuja produção se origina da Espanha –se presta a alegorias mais abrangentes e possibilidades inúmeras em suas releituras.
Os olhos de Goreng (Iván Massagué, de “O Labirinto do Fauno”, em brilhante atuação) despertam no exato instante em que
adentramos o filme. Sabemos, portanto, que este protagonista trata-se dos
olhos, também, do público, na vã tentativa de compreender a situação em que
está inserido. Ele se encontra numa sala quadrada de concreto. Inicialmente,
seu único companheiro, Trimagasi (Zorion Eguileor), não demonstra qualquer boa
vontade para esclarecer suas dúvidas, contudo, a narrativa habilmente fornecerá
as respostas na medida do necessário: Ambos estão numa espécie de prisão
vertical –Goreng submeteu-se à seis meses ali por livre e espontânea vontade,
ao fim dos quais receberá um certificado homologado; Trimagasi optou por ficar
ali ao invés de cumprir pena de um ano pelo homicídio acidental de um imigrante
–o único acesso externo são aberturas que levam (sem escadas ou cordas) aos
andares de cima e de baixo –aquele no qual estão é o Nº 48.
A questão é que ‘o poço’, como é chamado,
recebe um tablado flutuante que desce vindo dos andares de cima –do 1 ao 200,
segundo Trimagasi –indo para baixo em direção ao último. Em cada andar, o
tablado (que contém iguarias saborosas preparadas por uma equipe de cozinheiros
como vemos em breves segmentos) pára por alguns minutos. É o tempo que os dois
prisioneiros daquele andar têm para se alimentar até que o tablado desça para o
andar seguinte.
A lógica é tão simples quanto impiedosa: Os
aprisionados nos andares de cima têm a mesa intacta para se fartar, à medida,
porém que ela segue aos andares descendentes, a comida vai se acabando, até não
restar nada aos supostamente famintos e desesperados prisioneiros dos últimos
andares. Convêm, porém, estar preparado –comenta Trimagasi para Goreng em dado
momento –à cada 30 dias, os prisioneiros são sedados e mudados de andar. Uns
podem subir e tirar a sorte grande, mas, outros podem descer e se dar mal.
Deveras, Goreng conhecerá essa inclemente
realidade nos meses seguintes: No segundo mês, ele e Trimagasi acordam no andar
de Nº 171, onde praticamente o tablado chega sem qualquer resquício de comida.
Ali, como explica Trimagasi numa forma de justificar sua explicitada falta de
empatia com o companheiro, a única maneira de sobreviver até o mês seguinte é
praticar canibalismo sacrificando o incauto colega de cela.
Amarrado à cama por Trimagasi, e levado à
esperar sua fome chegar aos extremos da inanição –quando o canibalismo se faz
inevitável –Goreng só escapa da morte graças à intervenção de uma mulher
(Alexandra Masangkay) que desce os andares ficando sobre o próprio tablado da
comida: Segundo dizem, ela tenta percorrer todos os andares acreditando que seu
filho estará num deles.
Trabalhando primorosamente as questões morais e
circunstanciais em torno da ideia que desenvolve, o filme dirigido por Galder
Gaztelu-Urrutia estabelece uma metáfora para vários aspectos da natureza
humana: A primeira e imediata conclusão é de que “O Poço” é, em si, um reflexo
da luta de classes, onde os privilegiados dos níveis superiores sempre
negligenciam direitos iguais (a divisão justa da comida) aos habitantes de
níveis inferiores. Não à toa, o protagonista, indignado e idealista na medida
do possível, enquanto o desespero não o brutalizar, se mostra orientado por
ideais de esquerda. Mas, “O Poço” também pode ser sobre o capitalismo,
apontando a avidez e a convicção com que os prisioneiros não deixam quaisquer
sobras aos outros, comendo até o que não precisam. Uma clara ênfase na
desigualdade e na mesquinharia humana.
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