sexta-feira, 18 de agosto de 2023

O Poço


 Contrariando a sisudez de parte da crítica que diz haver uma fórmula mercadológica para todos os produtos de conteúdo exclusivo da plataforma,“O Poço” da Netflix faz, por vezes, lembrar o conceito de “Cubo”, de Vincenzo Natali, cuja premissa também gira em torno de uma prisão mirabolante dotada de normas internas particulares que se revelavam desafiadoras às aptidões de seus prisioneiros. Entretanto, se “Cubo” era abertamente um criativo exercício de suspense, “O Poço” –cuja produção se origina da Espanha –se presta a alegorias mais abrangentes e possibilidades inúmeras em suas releituras.

Os olhos de Goreng (Iván Massagué, de “O Labirinto do Fauno”, em brilhante atuação) despertam no exato instante em que adentramos o filme. Sabemos, portanto, que este protagonista trata-se dos olhos, também, do público, na vã tentativa de compreender a situação em que está inserido. Ele se encontra numa sala quadrada de concreto. Inicialmente, seu único companheiro, Trimagasi (Zorion Eguileor), não demonstra qualquer boa vontade para esclarecer suas dúvidas, contudo, a narrativa habilmente fornecerá as respostas na medida do necessário: Ambos estão numa espécie de prisão vertical –Goreng submeteu-se à seis meses ali por livre e espontânea vontade, ao fim dos quais receberá um certificado homologado; Trimagasi optou por ficar ali ao invés de cumprir pena de um ano pelo homicídio acidental de um imigrante –o único acesso externo são aberturas que levam (sem escadas ou cordas) aos andares de cima e de baixo –aquele no qual estão é o Nº 48.

A questão é que ‘o poço’, como é chamado, recebe um tablado flutuante que desce vindo dos andares de cima –do 1 ao 200, segundo Trimagasi –indo para baixo em direção ao último. Em cada andar, o tablado (que contém iguarias saborosas preparadas por uma equipe de cozinheiros como vemos em breves segmentos) pára por alguns minutos. É o tempo que os dois prisioneiros daquele andar têm para se alimentar até que o tablado desça para o andar seguinte.

A lógica é tão simples quanto impiedosa: Os aprisionados nos andares de cima têm a mesa intacta para se fartar, à medida, porém que ela segue aos andares descendentes, a comida vai se acabando, até não restar nada aos supostamente famintos e desesperados prisioneiros dos últimos andares. Convêm, porém, estar preparado –comenta Trimagasi para Goreng em dado momento –à cada 30 dias, os prisioneiros são sedados e mudados de andar. Uns podem subir e tirar a sorte grande, mas, outros podem descer e se dar mal.

Deveras, Goreng conhecerá essa inclemente realidade nos meses seguintes: No segundo mês, ele e Trimagasi acordam no andar de Nº 171, onde praticamente o tablado chega sem qualquer resquício de comida. Ali, como explica Trimagasi numa forma de justificar sua explicitada falta de empatia com o companheiro, a única maneira de sobreviver até o mês seguinte é praticar canibalismo sacrificando o incauto colega de cela.

Amarrado à cama por Trimagasi, e levado à esperar sua fome chegar aos extremos da inanição –quando o canibalismo se faz inevitável –Goreng só escapa da morte graças à intervenção de uma mulher (Alexandra Masangkay) que desce os andares ficando sobre o próprio tablado da comida: Segundo dizem, ela tenta percorrer todos os andares acreditando que seu filho estará num deles.

Trabalhando primorosamente as questões morais e circunstanciais em torno da ideia que desenvolve, o filme dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia estabelece uma metáfora para vários aspectos da natureza humana: A primeira e imediata conclusão é de que “O Poço” é, em si, um reflexo da luta de classes, onde os privilegiados dos níveis superiores sempre negligenciam direitos iguais (a divisão justa da comida) aos habitantes de níveis inferiores. Não à toa, o protagonista, indignado e idealista na medida do possível, enquanto o desespero não o brutalizar, se mostra orientado por ideais de esquerda. Mas, “O Poço” também pode ser sobre o capitalismo, apontando a avidez e a convicção com que os prisioneiros não deixam quaisquer sobras aos outros, comendo até o que não precisam. Uma clara ênfase na desigualdade e na mesquinharia humana.

Ainda assim, o roteiro escrito por David Desola e Pedro Rivero oferece, em seu desfecho, um tênue facho de esperança: A criança, habitante do último andar, o de Nº 333 (!), é enviada no tablado em direção ao topo, como um sacrifício derradeiro do já combalido Goreng: Em um filme perturbador, que não economiza em sangue e nem nas ações mais extremas justificadas pelo desespero, a inesperada mensagem que fica é que ainda há esperança para a pureza e a inocência em meio à mais inclemente das hierarquias sociais. Basta nos importarmos.

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