terça-feira, 28 de novembro de 2023

Por Que Odiamos?


 Durante a produção de “Amor Sublime Amor”, o diretor Steven Spielberg se deparou com uma inevitável reflexão em torno do tema que norteava sua obra, o filme de 1961 que ele refilmava, e a peça teatral da qual era adaptado: A intolerância.

É a intolerância, mais do que qualquer outra coisa, o combustível que alimenta as tragédias do ser humano, e que, à sua maneira, está presente nas mais diversas expressões humanistas do trabalho de Spielberg. Ao se dar conta de que “Amor Sublime Amor” era um filme sobre intolerância, mais do que sobre amor, Spielberg decidiu ir mais a fundo, e produziu esta brilhante série documental pela Discovery –dividida em seis primorosos episódios –que se presta a mergulhar nos mais diversos mecanismos (históricos, sociais, comportamentais, científicos) que levam um ser humano a antagonizar seu semelhante. Não é um documentário simples, no sentido de que, não exige, em dado momento, nervos de aço do expectador –como é anunciado no início de cada capítulo, a obra não se exime de mostrar cenas atrozes, de conflito, violência e barbárie, para ilustrar o quão selvagem o ser humano é capaz de se tornar quando suas ações se deixam alimentar pela irracionalidade do ódio, no entanto, ele é –para aqueles que forem capazes de lhe fazer a travessia –uma obra recompensadora, esclarecedora e lúcida sobre as mazelas abissais do subconsciente humano e os esforços salutares para enfrentá-las.

No primeiro episódio, “Origem”, somos conduzidos pelo antropologista evolucionário Brian Hare que nos explica que o ódio nutrido entre os seres humanos tem, entre outros gatilhos, uma gênese na nossa própria evolução animal, que remota a milhões de anos –comportamentos flagrados entre pessoas polarizadas por política ou quaisquer outras razões se assemelha ao de grupos de animais, como os chimpanzés, que foram nossos antepassados na escala evolutiva.

No segundo episódio, “Tribalismo”, uma reflexão um pouco semelhante leva a Dra. Laurie Santos, uma cientista cognitiva, a discorrer sobre o modo como o ser humano age e pensa em coletividade: Genes que remontam da época das cavernas (das tribos), que são essenciais à sobrevivência da espécie (e, portanto, à evolução) nos levam a adotar um grupo e a ele defender com unhas e dentes, sejam por motivos territoriais, religiosos políticos, étnicos ou algum outro –um impulso, explica ela, através do qual somos impelidos a abraçar uma ideologia e defender ferrenhamente aqueles que concordam conosco, na mesma medida em que antagonizamos de maneira quase irracional aqueles que se opõem ao nosso modo de ser. É neste episódio que surgem, como perfeito exemplo do tribalismo, as torcidas de futebol organizadas que hostilizam violentamente seus adversários –os chamados hooligans –e justificam todos os seus atos pelo amor ao esporte e dedicação ao seu time.

O terceiro episódio, “Ferramentas e Táticas”, traz o depoimento do jornalista e historiador Jelani Cobb, cujo objetivo é registrar e comentar a História –compreender e analisar o passado, acredita ele, é uma forma de prevenir e conscientizar o futuro dos erros cometidos. Ao mesmo tempo, sua pesquisa busca incessantemente descobrir quais foram os ‘instrumentos’ que levaram pessoas a perder a capacidade de enxergar outros como seus semelhantes (a ‘desumanização’) e assim perpetrar atos de ódio e crueldade inicialmente tidos por impraticáveis.

No quarto episódio, “Extremismo”, é a vez de Sasha Avlicek, uma especialista no estudo do extremismo, expor sua experiência como filha de imigrantes iugoslavos na Inglaterra, e testemunha, desde tenra idade, do terrível genocídio perpetrado no Leste Europeu –na vida adulta, seu objetivo passou a ser compreender e enfrentar o processo de radicalização que leva a manifestações contundentes de violência. Paralelamente, conhecemos a história do ex-skinhead Frank Meeink, cuja criação brutal e negligente da parte de seus tutores o empurrou para a delinquência. Um ambiente do qual ele foi capaz de se desvencilhar. É nesse episódio também que é citado o famoso Experimento Social de Stanford –no qual voluntários capturados entre os alunos da universidade simularam uma situação de “carcereiros e encarcerados” por dias a fio, até que a encenação (e o antagonismo) entre eles começou a se tornar perigosamente real –acontecimento retratado no filme alemão “A Experiência” e em outras produções.

Em “Crimes Contra A Humanidade”, o quinto episódio, acompanhamos a advogada especializada em crimes internacionais, Patricia Viseur Sellers, evocando casos como o Massacre de Ruanda, o Genocídio Indígena durante a colonização da América, a Escravidão no Sul dos EUA, o Apartheid, a Revolução do Khmer Vermelho no Camboja e, obviamente, o Holocausto Nazista. São observadas assim as circunstâncias por meio das quais contextos historicamente turbulentos distorcem valores humanos aos olhos de toda uma coletividade de forma a conduzirem matanças e atos de ódio inicialmente tidos por inacreditáveis.

No sexto e último episódio, “Esperança”, o neurocientista Emile Bruneau compartilha de seus intensos estudos acerca das divisões que separam pessoas que tinham tudo para compartilharem uma relação pacífica, tomando como exemplos moradores e aldeões da América do Sul em oposição a ex-integrantes das F.A.R.C. (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Para Bruneau, o pensamento crítico, o ‘conhecer para entender’ pode levar a um esclarecimento das ações do outro que remove a névoa por meio da qual as pessoas se veem como inimigos.

Embora não lance mão de cenas verdadeiramente chocantes (não se vê nenhum momento tão brutal ou agressivo como num filme de terror, por exemplo), a série possui um viés profundamente perturbador em sua essência, na veracidade acachapante dos registros absolutamente autênticos que expõe ao expectador e no teor sem amenidades com que compartilha categoricamente atrocidades reais cometidas pelo mundo todo –e, para tanto, cada episódio alerta o público do poder desestabilizador de suas imagens. A despeito disso tudo, como na filmografia de Spielberg, “Por Que Odiamos?” exala conciliação e fé na raça humana ao expor, mais do que os autores de tantos malefícios, os especialistas salutares que almejam usar todos esses exemplos para aprender sobre o passado e, no processo, construir um futuro melhor.

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