quinta-feira, 23 de novembro de 2023

O Livro dos Prazeres


 Existem autores difíceis –desafiadores até! –de serem vertidos para cinema. Certamente, a brasileira Clarice Lispector é um deles. Sua obra “Uma Aprendizagem Ou O Livro dos Prazeres” é uma viagem existencialista ao âmago da angústia e da solidão, conduzida por uma personagem dilacerada pelo vazio de relacionamentos sem profundidade.

O filme, dirigido por Marcela Lordy, até busca, a sua maneira, ser algo parecido, lançando mão de subterfúgios hábeis do cinema brasileiro para contornar a abstração literária de sua narrativa a fim de pontuar com eventos mais sólidos a linguagem sensorial, poética e nebulosa presente nas páginas.

O resultado é uma obra cheia de personalidade no registro de uma melancolia onipresente, revelador da sensibilidade toda particular de uma diretora ao abordar o erotismo tão compulsório do cinema nacional (e o filme, para um longa-metragem lançado na década de 2020, tem até que várias cenas de nudez e sexo!), mas certamente insatisfatório no alcance de uma atmosfera e uma narrativa que fizessem jus ao texto de Lispector.

Contudo, “O Livro dos Prazeres” se impõe como um longa-metragem na descoberta de uma outra força imprevista: A atriz principal (e também produtora) Simone Spoladore (de “Lavoura Arcaica”), dona de uma expressividade tocante e peculiar, e uma beleza madura e envolvente.

Ela é Lori, uma professora de primeiro grau, incapaz de esconder a aflição que a consome mesmo de seus pequenos alunos em sala de aula: Lori submete as crianças à lições que visam despertar sua atenção para as desilusões da vida. Talvez porque, no arremedo de vida social que mantém, Lori é incapaz de se aprofundar em relacionamentos, estabelecendo conexões quando muito furtivas com os homens que sua beleza é capaz de atrair.

Em algum momento, ela conhece Ulisses (o argentino Javier Drolas com um sotaque que drena um pouco da veemência do personagem), um professor universitário de filosofia que vai gradualmente invadindo sua vida, com sua presença cada vez mais difícil de ser ignorada e com seus comentários, ora incipientes e circunspectos sobre quem ela é, ora reveladores de suas carências –e encontrar alguém tão capaz de expô-la sem os disfarces de sua calculada sexualidade é, para Lori, em princípio, um flagelo, mas, aos poucos também, uma redenção.

Esse é, pois, o caminho que a jornada da protagonista assim sedimentada nesta obra irá traçar, com perícia e cuidado artístico –características, felizmente, cada vez mais abundantes no cinema nacional –mas, vez ou outra, também com alguma falta de sutileza: As personagens Lori (de Lorelei, a sereia encantadora de homens das lendas) e de Ulisses (de “A Odisséia”, de Homero, que enfrenta toda sorte de contratempos e seres mitológicos a fim de regressar à Ítaca e à sua esposa) sugerem de fato uma contraposição entre os dois que dá certo charme reflexivo à circunstância romântica à cercá-los, mas não havia, deveras, a necessidade de explicitar isso em um dos diálogos mais expositivos do filme.

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