Embora lembre muito os delírios de “O Farol”, realizado por Robert Eggers e lançado em 2019, este “A Pele Fria” –no original, “Cold Skin” –foi lançado dois anos antes, em 2017 portanto, e ainda vem a ser adaptado do livro do escritor espanhol Albert Sanchez Piñol.
A narrativa segue atentamente o misterioso
protagonista, vivido por David Oakes (do trash
cult “Halloween Pussy Trap Kill Kill!”), jovem que, por volta da Primeira
Guerra Mundial, parece querer se refugiar em águas longínquas da Antártica. O
navio que o leva atraca numa distante e quase desabitada ilha, na qual ele
parece conformado em estudar a variação dos ventos por meses a fio, longe de
qualquer traço de civilização. Contudo, alertam-lhe a tripulação, ele não
estará de todo sozinho: Lá, além da pequena e mal-cuidada cabana que o abrigará
(e que no passado abrigou um meteorologista então desaparecido), há também um
farol, no qual vive um homem atormentado e arredio, quase um eremita de nome
Gruner (o saudoso e talentos Ray Stevenson).
Há algo estranho em Gruner e, quaisquer que
sejam os motivos de sua presença lá, ele se recusa a comentar. A tripulação
logo parte deixando para trás o protagonista anônimo –ele é, quando muito,
chamado de Amigo... –em meio à esse desolado cenário que predominará durante
todo o árduo filme.
O rapaz não tarda a descobrir as facetas
macabras que cercam a região. Todas as noites, a ilha é assolada pela invasão
de misteriosas e perigosas criaturas, uma espécie de homens-peixe que atacam
vorazmente quem eles encontram. Teriam sido os responsáveis pelo
desaparecimento do morador anterior da cabana?
Escapando por muito pouco, o rapaz, agora que a
cabana se acha destruída, deve pedir refúgio à Gruner, no farol, na tentativa
de sobreviver aos outros ataques que se sucederão nas noites seguintes. Gruner
compreende a situação um pouco melhor do que dera a entender –ele sabe que
noite sim, noite não, as criaturas aparecem para atacá-los. Sabe que a luz e o
fogo podem rechaçá-los (razão que o manteve vivo durante todo esse tempo). E
sabe (ou tem uma ótima ideia) do porque eles insistem em voltar àquela ilha
para atacá-los: Ali, com Gruner, está uma fêmea da espécie, à quem ele deu o
nome de Aneris (interpretada com primazia gestual e debaixo de quilos de
impressionante maquiagem pela espanhola Aura Garrido).
Gruner deixa que o rapaz fique refugiado ali
com eles (não sem antes submetê-lo à um terrível teste de fogo na primeira
noite em que as criaturas atacam) e, nos dias e noites que se seguem, ele vai
compreendendo um pouco melhor a perturbadora relação de Gruner com Aneris –na
maior parte do tempo, ela é, para ele, uma espécie de animal de estimação, a
quem ele trata com severa indiferença e desprezo, porém, ocasionalmente, Gruner
abusa sexualmente da criatura (!) que parece aceitar passivamente esse tratamento.
À medida que o tempo passa, o jovem vai
juntando pequenos indícios do que se passou naquela ilha nos meses e anos
anteriores –que dizem respeito ao desfecho do meteorologista predecessor –
busca fazer planos para tentar sair de lá, a maioria deles, frustrados pelo
convicto Gruner, que não deseja mais partir, e nem que ele parta. No entanto,
as criaturas não param de vir, noite após noite, e com o tempo, eles não terão
mais munição para confrontá-los.
Construído com eficácia e com elementos que
remetem à austeridade da literatura gótica ao estilo de H.P. Lovecraft, esta
obra conduzida pelo diretor Xavier Gens (do terror “A Fronteira”), foi também
lançada no mesmo ano do oscarizado “A Forma da Água”, de Guillermo Del Toro,
com o qual também guarda inúmeras semelhanças –como ele, sua premissa
mirabolante ousa esboçar um relacionamento entre o ser humano e o monstro
marinho que adentra as áreas ambíguas da relação sexual. No entanto, se na obra
de Del Toro, esse expediente inusitado serve à uma reflexão sobre os mecanismos
do preconceito e à uma exaltação fantasiosa do amor, neste trabalho de Xavier
Gens, ele surge como mais um dos vários impulsos que afastam o homem de sua
civilidade, rumo à barbárie, quando contempla o limiar de sua sobrevivência e
de sua solidão existencial.
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