quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

A Pele Fria


 Embora lembre muito os delírios de “O Farol”, realizado por Robert Eggers e lançado em 2019, este “A Pele Fria” –no original, “Cold Skin” –foi lançado dois anos antes, em 2017 portanto, e ainda vem a ser adaptado do livro do escritor espanhol Albert Sanchez Piñol.

A narrativa segue atentamente o misterioso protagonista, vivido por David Oakes (do trash cult “Halloween Pussy Trap Kill Kill!”), jovem que, por volta da Primeira Guerra Mundial, parece querer se refugiar em águas longínquas da Antártica. O navio que o leva atraca numa distante e quase desabitada ilha, na qual ele parece conformado em estudar a variação dos ventos por meses a fio, longe de qualquer traço de civilização. Contudo, alertam-lhe a tripulação, ele não estará de todo sozinho: Lá, além da pequena e mal-cuidada cabana que o abrigará (e que no passado abrigou um meteorologista então desaparecido), há também um farol, no qual vive um homem atormentado e arredio, quase um eremita de nome Gruner (o saudoso e talentos Ray Stevenson).

Há algo estranho em Gruner e, quaisquer que sejam os motivos de sua presença lá, ele se recusa a comentar. A tripulação logo parte deixando para trás o protagonista anônimo –ele é, quando muito, chamado de Amigo... –em meio à esse desolado cenário que predominará durante todo o árduo filme.

O rapaz não tarda a descobrir as facetas macabras que cercam a região. Todas as noites, a ilha é assolada pela invasão de misteriosas e perigosas criaturas, uma espécie de homens-peixe que atacam vorazmente quem eles encontram. Teriam sido os responsáveis pelo desaparecimento do morador anterior da cabana?

Escapando por muito pouco, o rapaz, agora que a cabana se acha destruída, deve pedir refúgio à Gruner, no farol, na tentativa de sobreviver aos outros ataques que se sucederão nas noites seguintes. Gruner compreende a situação um pouco melhor do que dera a entender –ele sabe que noite sim, noite não, as criaturas aparecem para atacá-los. Sabe que a luz e o fogo podem rechaçá-los (razão que o manteve vivo durante todo esse tempo). E sabe (ou tem uma ótima ideia) do porque eles insistem em voltar àquela ilha para atacá-los: Ali, com Gruner, está uma fêmea da espécie, à quem ele deu o nome de Aneris (interpretada com primazia gestual e debaixo de quilos de impressionante maquiagem pela espanhola Aura Garrido).

Gruner deixa que o rapaz fique refugiado ali com eles (não sem antes submetê-lo à um terrível teste de fogo na primeira noite em que as criaturas atacam) e, nos dias e noites que se seguem, ele vai compreendendo um pouco melhor a perturbadora relação de Gruner com Aneris –na maior parte do tempo, ela é, para ele, uma espécie de animal de estimação, a quem ele trata com severa indiferença e desprezo, porém, ocasionalmente, Gruner abusa sexualmente da criatura (!) que parece aceitar passivamente esse tratamento.

À medida que o tempo passa, o jovem vai juntando pequenos indícios do que se passou naquela ilha nos meses e anos anteriores –que dizem respeito ao desfecho do meteorologista predecessor – busca fazer planos para tentar sair de lá, a maioria deles, frustrados pelo convicto Gruner, que não deseja mais partir, e nem que ele parta. No entanto, as criaturas não param de vir, noite após noite, e com o tempo, eles não terão mais munição para confrontá-los.

Construído com eficácia e com elementos que remetem à austeridade da literatura gótica ao estilo de H.P. Lovecraft, esta obra conduzida pelo diretor Xavier Gens (do terror “A Fronteira”), foi também lançada no mesmo ano do oscarizado “A Forma da Água”, de Guillermo Del Toro, com o qual também guarda inúmeras semelhanças –como ele, sua premissa mirabolante ousa esboçar um relacionamento entre o ser humano e o monstro marinho que adentra as áreas ambíguas da relação sexual. No entanto, se na obra de Del Toro, esse expediente inusitado serve à uma reflexão sobre os mecanismos do preconceito e à uma exaltação fantasiosa do amor, neste trabalho de Xavier Gens, ele surge como mais um dos vários impulsos que afastam o homem de sua civilidade, rumo à barbárie, quando contempla o limiar de sua sobrevivência e de sua solidão existencial.

É uma realização bem orquestrada e, se passa do ponto em alguns aspectos e mostra-se apetecível apenas à públicos específicos, ele traz um final que promove um belo encerramento de arco para seus três protagonistas, Aneris, Gruner e o jovem misterioso –ao fim, todos terão experimentado transformações muito particulares (inclusive Aneris que, da servidão e submissão, descobre a importância crucial para sua espécie), embora isso não necessariamente os tenha levado aonde queriam ir.

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