terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Assassinos da Lua das Flores


 Obra gigantesca de Martin Scorsese, este épico investigativo e intimista sobre a degradação moral joga luz sobre um fato histórico não muito difundido, mas dos poucos a elucidar com nitidez cristalina a predisposição aterradora para a perversidade escondida no coração da América.

Início da década de 1920. As terras pertencentes aos nativos norte-americanos Osage têm petróleo, o que faz de muitos deles, algumas das pessoas mais ricas dos EUA de então. Entretanto, os Osage não possuem a sanha gananciosa do capitalismo, o que os torna alvo da mesquinharia e dos interesses ambíguos de muitos homens brancos aproveitadores. No Condado de Osage, no estado do Oklahoma, um pólo de crescimento que agrega as duas culturas e, aos poucos, se torna palco das intrigas, um massacre lento, gradual e despercebido se sucede ao longo dos anos –os homens brancos não mais hostilizam abertamente os indígenas como no Velho Oeste poucos anos antes, agora eles querem lhes tomar o patrimônio por meio de esquemas escusos embasados pela Lei. Alguns casam-se com as mulheres de determinada família e, pouco a pouco, orquestram a morte de todos os membros (!) para ficarem com o vasto espólio financeiro pela lei de sucessão. As mortes (algumas, forjadas como suicídios; outras, nem mesmo isso) devido ao fato de ocorrerem com pessoas nativas não recebem qualquer atenção das coniventes autoridades locais.

É nessa circunstância que chega ao condado o ex-combatente Ernest Burkhart (Leonardo Dicaprio), vindo das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, sobrinho do todo-poderoso local Will Hale (Robert De Niro). Inicialmente trabalhando como motorista, Ernest, sob orientação arguta do próprio tio, se aproxima e se casa com a jovem Mollie (a extraordinária Lily Gladstone), herdeira de uma das muitas fortunas do lugar. Mollie tem uma família numerosa –a mãe e várias irmãs –mas, não tarda a cair nas malhas insidiosas das tramóias de Wiil Hale e se tornar, com o tempo, a única restante da família (!), o que torna portanto, Ernest, o herdeiro de sua riqueza.

Não passa despercebido, ao diretor Scorsese, a curiosidade em torno do fato de que esse relato histórico assim descortinado, é um tanto quanto desconhecido do grande público, ciente do quão tal elemento traz de lastimável à História Norte-Americana; ele evidencia esse traço de vergonha, ao agregar aspectos inesperadamente patéticos na dinâmica de seus personagens principais a despeito de toda densidade e dramaticidade predominante, sobretudo, a relação de subserviência, fidelidade injustificada e dissimulação gaiata entre Ernest e Will –e nesse sentido, são primordiais as composições de Dicaprio e De Niro na ênfase humanamente errádica de seus pouco escrupulosos personagens; o que evoca, em “Assassinos da Lua das Flores”, uma narrativa que sintetiza a um só tempo “Sangue Negro” e “O Poderoso Chefão”.

O terço final do filme mostra a chegada, um tanto tardia, do FBI à Osage, enviados para lá devido a um apelo da aflita Mollie na própria corte do senado, em Washington, ao presidente em pessoa. Representado pelo personagem do ótimo Jesse Plemons (de “Ataque dos Cães”), o FBI –num dos primeiros casos verdadeiramente bombásticos de sua recente criação –se depara com os absurdos alarmantes que cercaram as centenas de homicídios perpetrados contra dos Osage. E quando “Assassinos da Lua das Flores” se converte num filme de tribunal, já em sua reta final, somos confrontados com detalhes ainda mais assombrosos e desconcertantes das práticas criminosas empregadas em Osage, à medida que o protagonismo de Ernest vai se reforçando, fazendo dele, testemunha-chave para condenação (ou absolvição) dos culpados.

Como em “O Irlandês”, Martin Scorsese elabora aqui um vasto tratado ético e cinematográfico amparado justamente no formato monumental de sua realização (as três horas de duração são ultrapassadas com relativa facilidade), e almeja através daí uma experiência sensorial de acomodação e detalhamento para o expectador que muito pouco se reflete , em ritmo e lógica, ao que é feito hoje em termos de cinema comercial.

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