Existe um curioso contraste de expectativas na filmografia de Jane Campion desde sua revelação em “Sweetie” (1989) e “Um Anjo Em Minha Mesa” (1990); presume-se que haverá toda uma sensibilidade de natureza feminina em suas realizações e o que encontramos, na maioria das vezes, são retratos áridos e intimistas da aspereza, da agressividade, ainda que a sutileza com que se dá tal execução seja, quase sempre, mérito dela ser mulher.
“Power Of The Dog” –ou “Ataque dos Cães” numa
tradução insatisfatória e insuficiente do título original –exemplifica bem essa
disfunção: Um faroeste quase contemporâneo (ambientado em 1927) onde não se
dispara um único tiro a despeito dos níveis elevados de tensão que ele consegue
atingir. Sua atenção está em facetas inerentes aos seus personagens e como tais
aspectos são determinantes para seus desfechos. Com efeito, as frases que
encerram e que terminam o filme (a primeira, mencionada por um dos personagens;
a segunda um versículo bíblico que, inclusive, esclarece seu título) são
fundamentais para a compreensão de seu propósito.
Os dois irmãos Burbank tocam seu rancho e sua
criação de gado. São eles o irascível e insensível Phil (Benedict Cumberbatch,
brilhante) e o comedido George (Jesse Plemons, de “Jungle Cruise”, numa atuação
cheia de dignidade). Os irmãos têm personalidades tão opostas quanto
complementares, e somente assim, a dinâmica entre eles parece funcionar: George
tenta ignorar as truculências de Phil, enquanto Phil faz, na medida do
possível, vista-grossa ao fato do irmão agir e ser diferente em tudo e por tudo
dele. Caso de uma parada ocasional de sua comitiva numa humilde estalagem onde
fazem a refeição –estabelecimento tocado pela viúva Rose (Kirsten Dunst, num
corajoso registro dos efeitos da idade e da desilusão sobre sua outrora beleza)
com a ajuda do solícito filho Peter (Kodi Smith-McPhee), um garoto retraído de
hábitos peculiares. Lá, Phil de pronto implica com Peter, autor das flores de
papel que decoram as mesas. A situação exaspera os ânimos da entristecida Rose
e, numa tentativa de confortá-la, George se enamora dela.
Quando os dois decidem se casar,
automaticamente transferem essa circunstância para o rancho da família: Uma vez
lá, Rose –que padece de potenciais problemas de alcoolismo –encontra
dificuldade em lidar com a ameaça que o ambiente excessivamente rigoso e
masculino exerce sobre as fragilidades de seu filho, e, sobretudo, com a
presença nada amistosa, cheia de rancor e crueldade de Phil.
Ele, contudo, esconde celeumas insondáveis: Fala
o tempo todo de seu falecido mentor, um certo Bronco Henry –personagem que
nunca aparece, mas é essencial à narrativa –e, embora recrimine Peter o tempo
todo devido ao seu suposto comportamento afeminado, aos poucos, é o próprio
Phil quem dá indícios de suas tendências homossexuais surgidas ainda jovem em
sua relação com Bronco Henry. O foco deste trabalho de Jane Campion, diretora
hábil na ênfase das arestas inóspitas do amor, é, portanto, a masculinidade
tóxica, tornada ainda mas desprezível quando vem adornada pelos elementos da
hipocrisia: O protagonista, tão acusatório, persecutório e supostamente másculo
de Benedict Cumberbatch ofende, recrimina e agride as pessoas por aparentarem
ser aquilo que, no fundo, ele é.
Tal condição, segundo rege a implacável
cartilha dramática construída por Campion aqui, o torna alguém perigoso, um cão
raivoso: É questão de tempo, percebe Peter, que Phil encontre pretextos para
fazer mal à instável Rose, e quando acontecer, talvez seja tarde demais para o
sensato George tomar alguma providência. Sendo assim, sem que sequer o
expectador se dê conta, engrenagens se movimentam, ao longo da narrativa
pausada, episódica e atenta aos mínimos pormenores, para consolidar um plano em
movimento do qual só no momento certo (leia-se, nos quinze minutos finais!)
teremos a devida consciência.
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