segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Ataque dos Cães


 Existe um curioso contraste de expectativas na filmografia de Jane Campion desde sua revelação em “Sweetie” (1989) e “Um Anjo Em Minha Mesa” (1990); presume-se que haverá toda uma sensibilidade de natureza feminina em suas realizações e o que encontramos, na maioria das vezes, são retratos áridos e intimistas da aspereza, da agressividade, ainda que a sutileza com que se dá tal execução seja, quase sempre, mérito dela ser mulher.

“Power Of The Dog” –ou “Ataque dos Cães” numa tradução insatisfatória e insuficiente do título original –exemplifica bem essa disfunção: Um faroeste quase contemporâneo (ambientado em 1927) onde não se dispara um único tiro a despeito dos níveis elevados de tensão que ele consegue atingir. Sua atenção está em facetas inerentes aos seus personagens e como tais aspectos são determinantes para seus desfechos. Com efeito, as frases que encerram e que terminam o filme (a primeira, mencionada por um dos personagens; a segunda um versículo bíblico que, inclusive, esclarece seu título) são fundamentais para a compreensão de seu propósito.

Os dois irmãos Burbank tocam seu rancho e sua criação de gado. São eles o irascível e insensível Phil (Benedict Cumberbatch, brilhante) e o comedido George (Jesse Plemons, de “Jungle Cruise”, numa atuação cheia de dignidade). Os irmãos têm personalidades tão opostas quanto complementares, e somente assim, a dinâmica entre eles parece funcionar: George tenta ignorar as truculências de Phil, enquanto Phil faz, na medida do possível, vista-grossa ao fato do irmão agir e ser diferente em tudo e por tudo dele. Caso de uma parada ocasional de sua comitiva numa humilde estalagem onde fazem a refeição –estabelecimento tocado pela viúva Rose (Kirsten Dunst, num corajoso registro dos efeitos da idade e da desilusão sobre sua outrora beleza) com a ajuda do solícito filho Peter (Kodi Smith-McPhee), um garoto retraído de hábitos peculiares. Lá, Phil de pronto implica com Peter, autor das flores de papel que decoram as mesas. A situação exaspera os ânimos da entristecida Rose e, numa tentativa de confortá-la, George se enamora dela.

Quando os dois decidem se casar, automaticamente transferem essa circunstância para o rancho da família: Uma vez lá, Rose –que padece de potenciais problemas de alcoolismo –encontra dificuldade em lidar com a ameaça que o ambiente excessivamente rigoso e masculino exerce sobre as fragilidades de seu filho, e, sobretudo, com a presença nada amistosa, cheia de rancor e crueldade de Phil.

Ele, contudo, esconde celeumas insondáveis: Fala o tempo todo de seu falecido mentor, um certo Bronco Henry –personagem que nunca aparece, mas é essencial à narrativa –e, embora recrimine Peter o tempo todo devido ao seu suposto comportamento afeminado, aos poucos, é o próprio Phil quem dá indícios de suas tendências homossexuais surgidas ainda jovem em sua relação com Bronco Henry. O foco deste trabalho de Jane Campion, diretora hábil na ênfase das arestas inóspitas do amor, é, portanto, a masculinidade tóxica, tornada ainda mas desprezível quando vem adornada pelos elementos da hipocrisia: O protagonista, tão acusatório, persecutório e supostamente másculo de Benedict Cumberbatch ofende, recrimina e agride as pessoas por aparentarem ser aquilo que, no fundo, ele é.

Tal condição, segundo rege a implacável cartilha dramática construída por Campion aqui, o torna alguém perigoso, um cão raivoso: É questão de tempo, percebe Peter, que Phil encontre pretextos para fazer mal à instável Rose, e quando acontecer, talvez seja tarde demais para o sensato George tomar alguma providência. Sendo assim, sem que sequer o expectador se dê conta, engrenagens se movimentam, ao longo da narrativa pausada, episódica e atenta aos mínimos pormenores, para consolidar um plano em movimento do qual só no momento certo (leia-se, nos quinze minutos finais!) teremos a devida consciência.

Intimista ao extremo, na contramão do cinema convencional e cada vez mais barulhento de hoje, “Ataque dos Cães” é uma obra de rara contenção na qual tem-se a impressão que muito pouca coisa, ou quase nenhuma, acontece durante sua nada modesta duração. Ledo engano: Se o registro, em princípio, parece ser o de uma rotina campestre pontuada por tensões humanas e subliminares, em suas profundezas, muitas motivações, informações e reflexões estão em trânsito a fim de construir um premissa carregada de um incomum e inestimável significado.

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