segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Dr. Fantástico


 Em seu libelo anti-guerra, o audacioso Stanley Kubrick colocou, como era de se imaginar, os senhores da guerra como perfeitos idiotas potencialmente capazes das maiores imbecilidades. Nesse sentido, ele também refutou o eloquente formato de drama e seriedade para fazer deles os participantes de uma comédia e, com isso, escancarar o ridículo existente na paranóia e na hostilidade.

Mas, há algo de muito mais sutil na farsa de Kubrick do que sua premissa sugere: A tendência auto-destrutiva do ser humano é potencializada em grandes e pequenos atos que respondem, ora pelos arcos que determinam a narrativa do filme, ora por pequenos momentos, observados em detalhes que só um perfeccionista como Kubrick seria capaz de elaborar.

Por qual razão Peter Sellers está ali a desempenhar nada menos do que três personagens?

As respostas me escapam uma vez que foi a um tempo considerável que vi o filme; naquela postura analítica e austera que, é de praxe, costumamos encarar um trabalho do consagrado Kubrick. Todavia, a genialidade de “Dr. Fantástico” é, entre outras coisas, a quebra dessas expectativas. Espera-se dele um tratado inteligente, inquisitivo e contundente das animosidades bélicas fervilhantes do homem, e o que ele entrega é uma sátira política povoada de indivíduos apalermados, fingindo uns para os outros que sabem o que fazem, quando na verdade não sabem de coisa alguma. A ignorância conduz não só a erros crassos –passíveis, logo, logo, de acarretar a tragédia nuclear –mas também os enrola a ponto de não conseguirem resolver a complicação iminente: E você que achava “Não Olhe Para Cima” tão original...

O presidente dos EUA (Peter Sellers), na sala de guerra, mal sustenta a liderança que se espera dele –quando dois assessores seus saem no braço por motivações ridículas, ele pede, indulgente, que parem de brigar. Os pilotos despachados por engano para bombardear a Rússia o fazem sem que as autoridades sejam capazes de impedí-los com uma mera mensagem de contra-ordem. Os oficiais da base militar de onde partiram (entre eles, Peter Sellers!) se veem enrolados com besteiras surgidas de sua própria insensatez. Dentre todos, o suspeito conselheiro do presidente, o sibilante, cadeirante e megalomaníaco Dr. Strangelove (olha Peter Sellers aí de novo!), contempla a guerra nuclear cada vez mais inevitável com crescente entusiasmo; lá pelas tantas ele, que é alemão, sequer consegue conter os espasmos involuntários de sua mão que insiste em fazer a saudação nazista!

Lançado em 1964, “Dr. Fantástico”, embora não fizesse rodeios em cutucar a evidente ferida nazista da Segunda Guerra Mundial –ilustrada com ênfase corrosiva em seu bizarro personagem título –chegava às telas de cinema exatos dois anos após os acontecimentos da dramática Crise dos Mísseis de Cuba, quando o mundo esteve à beira, como nunca antes (e possivelmente nem depois), de uma catástrofe nuclear real.

Diferente dos outros autores cinematográficos de seu tempo, acometidos da cautela em saber se abordar tal assunto traumático não seria precoce demais, Kubrick pega o imediatismo de seu tema e não tarda a dele extrair um humor palpitante.

Como tantas obras de primor irrestrito a brotar de sua mente, “Dr. Fantástico” não se propõe a ganhar o público por meio de frivolidades mercadológicas; Kubrick quer, como sempre, provocar, e em seu intento, pouco há da intenção em ser aceito, ovacionado, ou paparicado. Se o filme que construiu com tão peculiar orientação é uma obra digna de ser lembrada tanto tempo depois de sua gênese, é porque seu resultado prima por uma qualidade cinematográfica inconteste, por um empenho na execução que o faz singular, e por uma habilidade inata e flagrante de compor momentos absolutamente antológicos, entre eles, seu desfecho, sem esperança, sem ressentimentos e sem lamentações.

Nele, estão imbuídos os princípios básicos de Kubrick enquanto realizador, sua incapacidade para ceder ao óbvio e ao redundante, e sua compreensão narrativa do choque que o ser humano (leia-se o público) carece para que a reflexão o leve a um mínimo de esforço e conscientização para almejar um mundo melhor.

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