quarta-feira, 13 de junho de 2018

A Forma da Água


O diretor Guillermo Del Toro sempre afirmou que os monstros nunca o decepcionaram. Com efeito, ele dedicou toda sua curiosa filmografia em lançar sobre eles um olhar completamente distinto do que tantos outros fizeram –distinto, inclusive, de outros grandes diretores do gênero de terror.
Se “Espinha do Diabo” enxergava sofrimento e tristeza no sobrenatural, e “O Labirinto do Fauno” justapunha o mundo fantástico que cerca os monstros como uma alternativa aos desabonos da realidade –ambos, seus maiores trabalhos até então –em “A Forma da Água”, Del Toro utiliza uma apaixonada homenagem à “O Monstro da Lagoa Negra” para falar sobre as sensações da exclusão, sobre a maldade inerente à natureza humana e sobre o amor.
E na visão singular que ele dedica à tudo que é monstruoso, não poderia ser outro senão Del Toro a conceber tal história, tão incrivelmente insólita quanto universalmente tocante.
A protagonista Elisa (numa interpretação absolutamente brilhante de Sally Hawkins) é muda e trabalha como faxineira numa instalação militar em Baltimore. Seu vizinho e melhor amigo é Giles (Richard Jenkins, também ele brilhante), um artista homossexual, amargurado pela chegada da meia-idade sem que antes experimentasse a plenitude da vida.
A melhor amiga de Elisa é Zelda (Octavia Spencer, com sua excelência habitual), sua colega de trabalho que conhece sua própria parcela de discriminação e descaso.
A instalação que as duas cuidam de limpar diariamente é um local turbulento na década de 1960 de então: A Corrida Espacial e a Guerra Fria acirraram os nervos normalmente acirrados dos militares e eles exigem, sem o menor tato, progressos de seus cientistas em relação aos avanços dos soviéticos.
É quando surge um espécime inusitado num dos tanques de água: Uma criatura aquática capturada na América do Sul (incorporada com fascinante expressividade gestual por Doug Jones) que desperta maravilhamento nos cientistas em geral, e a necessidade de destruição no perverso chefe de segurança em particular, vivido com corajoso rigor por Michael Shannon.
Furtivamente e sem que mais ninguém perceba, Elisa e a criatura se encontram dia após dia, e passam a cultivar uma identificação que nasce a partir do fato de não haver (e não poder haver) palavras entre eles (Elisa é, afinal, muda, e a criatura não compreende a linguagem humana). O silêncio torna a relação recíproca e igualitária (e Del Toro derrama encantamento no modo preciosista com que registra o nascimento do amor) e logo os dois estabelecem uma espécie de vínculo que começa como assombro, prodrige para a ternura, e em seguida para a atração sexual!
Porém, a criatura sofre pois os militares que o têm sob seu julgo estão dispostos a matá-lo em breve, o quê obriga Elisa a elaborar um arriscado plano para tirá-lo de lá.
Há infindáveis definições para o grande vencedor do Oscar 2018 de Melhor Filme e Melhor Direção (que divide com “OSenhor dos Anéis-O Retorno do Rei” a honraria de serem os dois únicos filmes de fantasia do cinema premiados na categoria principal): ele é, antes de mais nada, uma história de amor; um amor sexual, com erotismo e tudo o mais (com direito a cenas de nudez e sexo lindamente filmadas). Mas, ele é também uma ode ao desajuste, ao valor humanista de se abraçar a diferença e despir-se de preconceitos –e, nesse sentido, não apenas a atenção de Del Toro recai sobre o inusitado e encantador casal protagonista, mas, também sobre o personagem de Giles, e o do Dr. Hoffstetler (Michael Stuhlbarg), um caso raro de um soviético retratado com carinho e gentileza num filme americano ambientado na Guerra Fria (deve ser porque o diretor é mexicano...).
“A Forma da Água” também é outra coisa: Uma homenagem ao cinema.
No clima fantasiosamente embriagante que empresta à narrativa, nas sucessivas referências que pontuam as cenas –que vão desde o evidente “A Bela e A Fera” até “Splash-Uma Sereia Em Minha Vida”, com direito à um desconcertante momento musical que converte a fotografia maravilhosamente colorida em um filme preto & branco –e no carinho singular que confere a cada um dos personagens (detalhe esse que eleva este filme um degrau acima de todas as outras obras de sua filmografia) Del Toro realizou assim um dos mais poderosos manifestos em favor da tolerância no cinema.
Um filme digno de aplausos que expulsa o ódio da alma encantando o coração.

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