Na noite (e na madrugada adentro) do dia 22 de Janeiro de 1985, algo sem precedentes aconteceu no showbuziness: Uma reunião, até então tida como impraticável, de alguns dos mais fulgurantes nomes da música pop norte-americana. Todos eles foram reunidos num mesmo estúdio de gravação a fim de prepararem uma música destinada a simbolizar e a incentivar o mundo num gesto de solidariedade em prol das vítimas de fome severa na África. Essa música, caso você não tenha vivido no planeta Terra nas últimas décadas, veio a ser o single de avassalador sucesso “We Are The World”, e este documentário da Netflix, realizado por Bao Nguyen, vem a descortinar os percalços que anteciparam aquele evento, assim como expor ao mundo os bastidores preciosos do que aconteceu –em perspectiva, esse esforço serve também para avaliarmos, de nossa posição de público atual, o impacto que aquele gesto teve na conjuntura política de então, no mundo do entretenimento daquela década de 1980 assim retratada e na própria percepção dos artistas que dele participaram (e que comparecem prestando seus, muitas vezes, emocionados depoimentos).
Descobrimos, logo de início, que muito do que
aconteceu se deve pelo empenho, em várias frentes, do cantor Lionel Ritchie.
Então saído da banda The Commodores, Lionel almejava uma carreira solo, que
começava a despontar naqueles idos de 1984 –ele havia até mesmo sido convidado
a apresentar o American Music Awards, no início do ano seguinte. Foi quando o
produtor musical Quincy Jones apareceu com uma proposta inusitada: Inspirado
pelo ativismo sempre pertinente do ator, cantor e lenda Harry Belafonte, Quincy
e alguns outros grandes produtores do mercado musical resolveram arregaçar as
mangas e realizar um projeto que alertasse o público mundial acerca das
gravíssimas celeumas enfrentadas pela população da África, que morriam às
centenas de fome e desnutrição.
Era necessário que algo sem precedentes fosse
realizado, para que sua repercussão conseguisse extrair o público em geral da
apatia, e os produtores não conseguiam imaginar algo maior do que reunir os
maiores artistas da música atual num único espaço a fim de gravarem juntos uma
única canção.
Mas, qual canção seria essa?
Coube a Lionel Ritchie, entre outras coisas,
compor tal canção ao lado do sempre excêntrico (mas, nunca menos que
sensacional) Michael Jackson –ele relata, com muito bom humor, que Stevie
Wonder também havia sido chamado para a tarefa, mas não manifestou-se naqueles
dias por conta da apertada agenda.
Assim, enquanto Lionel e Michael tentavam
encontrar a composição certa, os produtores arregimentavam todos os nomes que
eram capazes de obter para gravar a tal música. Kenny Rogers? Aceitou na hora!
Madonna? Os produtores a queriam muito, mas não pôde aceitar. Bob Dylan?
Artista engajado que era, prontamente, disse sim. Bruce Springsteen? Ele estava
em turnê nos EUA, mas, na medida do possível, faria de tudo para participar.
Logo, um problema maiúsculo foi identificado: Era simplesmente impossível
conciliar um dia e um horário específicos que se harmonizassem na agenda
apertadíssima e disputada de tantas estrelas.
A saída (genial) que os produtores encontraram:
O único momento em que todos se reuniriam na mesma cidade, de Los Angeles,
seria na noite da premiação do American Music Awards –aquela na qual, vale
lembrar, Lionel Ritchie seria apresentador –então, seria naquela noite,
imediatamente após os prêmios, que todos seriam convocados nos estúdios da A.M.
Records.
O documentário registra a tensão dos produtores
e planejadores aumentando exponencialmente a medida que a data se aproxima e os
complexos preparativos do evento vão sendo executados. Faltando inacreditáveis
oito dias para a data marcada, Lionel e Michael ainda não tinham uma música
pronta –isso, numa época em que não haviam tecnologias digitais nem
facilitadoras como a internet para tornar a comunicação e o envio de gravações
mais ágeis. Lionel credita a criação da música, ocorrida num momento súbito e
inesperada, à Deus: Somente uma intervenção divina, ele afirma, teria permitido
à ele e à Michael Jackson (grandes artistas, cada um, mas de estilos e
sensibilidades diferentes) criarem absolutamente do nada uma canção de tal
forma inspiradora, bela e imediatamente acessível e reconhecível, capaz de se
adequar à personalidade de tantos artistas diferentes.
A aguardada noite de 22 de janeiro não tarda a
chegar; esse, deveras, não é o clímax do filme, mas sim todo o trecho que ocupa
sua segunda metade.
Após a cerimônia de premiação –na qual Lionel
Ritchie aproveitou a situação dos bastidores para reforçar o convite e
salientar a importância da presença dos artistas o maior número possível –os
estúdios A.M. começam a receber, pouco a pouco, seus célebres participantes,
numa organização que precisou de extrema habilidade a fim de que nenhuma
informação a esse respeito vazasse para imprensa; o que teria transformado tudo
em um circo caótico.
A reunião é inicialmente tímida, mas, aos
poucos, os artistas vão se entrosando para a execução do tão icônico refrão.
Personalidades como as de Michael Jackson (um dos mais dedicados, presente
desde quando a premiação ainda seguia, horas antes) e do produtor Quincy Jones
(agindo com profissionalismo e camaradagem, servindo de maestro e psicólogo das
estrelas) se destacam. Então, chega o momento, após muitos erros e acertos, das
gravações vocais individuais –ao contrário de canções que costumavam levar dias,
até semanas para serem gravadas e mixadas, “We Are The World” até pela reunião
improvável de tantas vozes festejadas da música, teve de ser toda ela gravada
numa única ocasião.
Entre inseguranças genuínas da parte de alguns
(como a humildade de Huey Lewis, reconhecendo o temor de cantar ao lado de
ídolos seus), o documentário destaca o
desconforto honesto de Bob Dylan; o bom humor admirável de Ray Charles; a
inspiração acolhedora de Stevie Wonder; e a comovente percepção de Diana Ross
ao final de tudo, quando chorou e disse “Não quero que isso acabe!”.
São momentos mágicos registrados pelas câmeras
e chega a ser quase inacreditável saber que houveram registros audio-visuais
tão precisos e meticulosos disso tudo –o documentário praticamente não precisa
se valer de expedientes como fotos de arquivos ou coisas assim.
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