Pode-se afirmar que ainda é relativamente recente a lembrança do bom filme para cinema de 1994, uma produção conturbada que atreveu-se a adaptar o clássico de Anne Rice (roteirizado pela própria autora, ainda viva na época) trazendo o astro Tom Cruise no papel do vampiro Lestat. É por isso mesmo, e até por algumas outras razões, que revela-se notável e audacioso este esforço em mais uma vez adaptar, agora no formato televisivo, a obra de Anne Rice, “As Crônicas Vampirescas”. Se no cinema essa intenção fracassou –mesmo após o sucesso de “Entrevista Com O Vampiro”, o filme, os demais capítulos da tetralogia não ganharam a luz do dia, chegando a ser produzido, quando muito, “A Rainha dos Condenados”, com pífio resultado –desta vez, como série de TV, as chances de que a criação de Anne Rice, em sua totalidade, ganhe uma tradução audio-visual à altura ficaram maiores.
Até porque o empenho e o capricho empregados
aqui chegam a ser comoventes.
Interpretado (aliás, magnificamente bem) por
Jacob Anderson, o vampiro Louis de Point Du Lac é agora um personagem bem
diferente; do trágico senhor de escravos vivido por Brad Pitt, ele tornou-se um
negro a tentar ganhar a vida tocando um negócio na Nova Orleans do início do
Século XX. É Louis quem, em pleno 2020, no auge da pandemia e do lockdown, recebe em seus suntuosos
aposentos, num edifício em Dubai, o repórter Daniel Malloy (um envelhecido Eric
Bogosian, de “Verdades Que Matam”), jornalista que o entrevistou quase
cinquenta anos antes, em São Francisco. Um vampiro centenário, Louis deseja
rever aqueles depoimentos e corrigir certas imprecisões de sua memória. É assim
que suas lembranças retornam à Nova Orleans onde, ao tentar gerenciar seus
ambiciosos negócios noturnos, Louis conhece Lestat de Lioncourt (Sam Reid,
fantástico num registro diferenciado do de Tom Cruise, ainda que igualmente
carregado de alta voltagem) que, mais tarde, ele descobre ser um vampiro. Após
ser transformado por Lestat, Louis também descobre estar por ele apaixonado –e
nessa dinâmica de sedução, tornada aqui explícita, a série se aprofunda com
ainda mais propriedade nas alegorias de segregação homossexual e de repressão
dos desejos presentes no texto de Anne Rice.
Louis e Lestat formam um casal. Enquanto Lestat
é uma força da natureza, uma criatura selvagem que abraça sua existência com o
fulgor de alguém no topo da cadeia alimentar, Louis é o indivíduo questionador
–ele lamenta, ao longo dos anos, que o ato de alimentar-se de sangue humano
venha atrelado à necessidade implacável de matar; e não tarda, a partir de
certo momento, a indagar quantos vampiros mais podem existir no mundo, onde
eles estariam, o que fariam e quem seriam. Questionamentos que nada mais fazem
senão irritar Lestat. O ponto de equilíbrio (ou não) dessa relação acaba sendo
Claudia (Bailey Bass, de “Avatar-O Caminho da Água”), menina que, ao ser salva
por Louis de um incêndio, termina convertida por Lestat em uma vampira. Mas,
Claudia é uma pária distinta: Transformada ainda menina, ela se ressente, com o
passar dos anos de sua condição de criança imortal. Isso e mais a relação de
ocasional abuso psicológico exercida por Lestat, levam os três a um impasse que
se revela irreversível.
Adaptando pouco mais da primeira metade do
livro (os cerca de 40% restantes do livro ficaram para a segunda temporada), a
série aproveita os muitos elementos intrínsecos da narrativa de Anne Rice para
se fazer brilhante justamente em aspectos que o filme não podia: Aqui, graças
ao tempo estendido da duração, entram em questão as armadilhas progressivas da
memória (tão mais traiçoeiras quando se é um imortal) na provocativa disputa
velada entre entrevistado e entrevistador; as circunstâncias taxativas e
opressoras da discriminação seja contra homossexuais (no romance relutante e
turbulento, porém ardente, entre Louis e Lestat) seja contra negros (no injusto
contexto em que Louis se vê como um empresário negro cercada por brancos; ou no
seu gradual afastamento da própria família) e a contundente reflexão sobre a
humanidade posta em xeque pela própria imortalidade, a grande contribuição
literária de Anne Rice, afinal, ao mito dos vampiros.
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