sábado, 24 de agosto de 2024

Entrevista Com O Vampiro - 1ª Temporada


 Pode-se afirmar que ainda é relativamente recente a lembrança do bom filme para cinema de 1994, uma produção conturbada que atreveu-se a adaptar o clássico de Anne Rice (roteirizado pela própria autora, ainda viva na época) trazendo o astro Tom Cruise no papel do vampiro Lestat. É por isso mesmo, e até por algumas outras razões, que revela-se notável e audacioso este esforço em mais uma vez adaptar, agora no formato televisivo, a obra de Anne Rice, “As Crônicas Vampirescas”. Se no cinema essa intenção fracassou –mesmo após o sucesso de “Entrevista Com O Vampiro”, o filme, os demais capítulos da tetralogia não ganharam a luz do dia, chegando a ser produzido, quando muito, “A Rainha dos Condenados”, com pífio resultado –desta vez, como série de TV, as chances de que a criação de Anne Rice, em sua totalidade, ganhe uma tradução audio-visual à altura ficaram maiores.

Até porque o empenho e o capricho empregados aqui chegam a ser comoventes.

Interpretado (aliás, magnificamente bem) por Jacob Anderson, o vampiro Louis de Point Du Lac é agora um personagem bem diferente; do trágico senhor de escravos vivido por Brad Pitt, ele tornou-se um negro a tentar ganhar a vida tocando um negócio na Nova Orleans do início do Século XX. É Louis quem, em pleno 2020, no auge da pandemia e do lockdown, recebe em seus suntuosos aposentos, num edifício em Dubai, o repórter Daniel Malloy (um envelhecido Eric Bogosian, de “Verdades Que Matam”), jornalista que o entrevistou quase cinquenta anos antes, em São Francisco. Um vampiro centenário, Louis deseja rever aqueles depoimentos e corrigir certas imprecisões de sua memória. É assim que suas lembranças retornam à Nova Orleans onde, ao tentar gerenciar seus ambiciosos negócios noturnos, Louis conhece Lestat de Lioncourt (Sam Reid, fantástico num registro diferenciado do de Tom Cruise, ainda que igualmente carregado de alta voltagem) que, mais tarde, ele descobre ser um vampiro. Após ser transformado por Lestat, Louis também descobre estar por ele apaixonado –e nessa dinâmica de sedução, tornada aqui explícita, a série se aprofunda com ainda mais propriedade nas alegorias de segregação homossexual e de repressão dos desejos presentes no texto de Anne Rice.

Louis e Lestat formam um casal. Enquanto Lestat é uma força da natureza, uma criatura selvagem que abraça sua existência com o fulgor de alguém no topo da cadeia alimentar, Louis é o indivíduo questionador –ele lamenta, ao longo dos anos, que o ato de alimentar-se de sangue humano venha atrelado à necessidade implacável de matar; e não tarda, a partir de certo momento, a indagar quantos vampiros mais podem existir no mundo, onde eles estariam, o que fariam e quem seriam. Questionamentos que nada mais fazem senão irritar Lestat. O ponto de equilíbrio (ou não) dessa relação acaba sendo Claudia (Bailey Bass, de “Avatar-O Caminho da Água”), menina que, ao ser salva por Louis de um incêndio, termina convertida por Lestat em uma vampira. Mas, Claudia é uma pária distinta: Transformada ainda menina, ela se ressente, com o passar dos anos de sua condição de criança imortal. Isso e mais a relação de ocasional abuso psicológico exercida por Lestat, levam os três a um impasse que se revela irreversível.

Adaptando pouco mais da primeira metade do livro (os cerca de 40% restantes do livro ficaram para a segunda temporada), a série aproveita os muitos elementos intrínsecos da narrativa de Anne Rice para se fazer brilhante justamente em aspectos que o filme não podia: Aqui, graças ao tempo estendido da duração, entram em questão as armadilhas progressivas da memória (tão mais traiçoeiras quando se é um imortal) na provocativa disputa velada entre entrevistado e entrevistador; as circunstâncias taxativas e opressoras da discriminação seja contra homossexuais (no romance relutante e turbulento, porém ardente, entre Louis e Lestat) seja contra negros (no injusto contexto em que Louis se vê como um empresário negro cercada por brancos; ou no seu gradual afastamento da própria família) e a contundente reflexão sobre a humanidade posta em xeque pela própria imortalidade, a grande contribuição literária de Anne Rice, afinal, ao mito dos vampiros.

Nas mãos de uma equipe técnica prodigiosa e de um elenco jovem e ávido por demonstrar talento, o texto de Anne Rice vai além da produção visualmente arrebatadora de 1994 para se tornar uma sinfonia sangrenta de desejo e recordação, um jogo complexo e fascinante de sedução e um tratado inteligente e doloroso sobre a pureza e a sordidez da existência.

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