Refletir sobre solidão é ter em mente, antes de qualquer pressuposto, que se trata de uma experiência extremamente íntima e particular. Não há uma definição reta e certa, nem despida de alternativas para aquilo que se compreende por descobrir-se ‘sozinho’. E se não há uma definição, então automaticamente não é possível haver uma espécie única de representação, seja no cinema, na literatura, no teatro ou na arte como um todo. São vastas as possibilidades para se ilustrar a solidão de um personagem ou, quem sabe, do artista em si. No cinema, já foram inúmeras as tentativas –desde o deslocamento melancólico de “Encontros e Desencontros” até o desamparo físico de “Náufrago” passando pelo isolamento emocional de “Amores Expressos”. Dentre as tantas formas de explorar a solidão, uma delas é pautada, justamente, pela desorientação perante o advento avassalador da modernidade e de sua introdução de novos estímulos sociais para o ser humano: Uma espécie de solidão definida pela incapacidade de lidar com o turbilhão de emoções proporcionado pelas novas ferramentas tecnológicas.
O tempo em que a protagonista de “Millenium
Mambo” existe é esse período de turbulência informativa e visual do novo
milênio, já o espaço, é na proliferação de elementos de uma grande cidade, seu
nome é Vicky (vivida pela bela Shu Qi), jovem taiwanesa cuja narrativa em off elucida breves momentos de sua vida,
uma década atrás, quando ainda era adolescente. Vicky não apenas é oprimida
pela grandiosidade da metrópole onde sempre viveu, ela é também a contraparte
passiva de um relacionamento abusivo com Hao-Hao (Tuan Chun-Hao), aspirante a
DJ e viciado em drogas que desperta a atenção de Vicky ao exibir um carisma
social que ela jamais teve.
A narrativa se incumbe de relatar as idas e
vindas, e os altos e baixos dessa relação, determinando-a como um divisor de
águas na transição dela, de adolescente para mulher.
“Millenium Mambo” converte os ambientes
noturnos da cidade –notoriamente frequentados por jovens –numa cacofonia visual
com a nítida intenção de despertar desconforto no olhar: Somos arremessados,
como intrusos desprevenidos, em baladas, festas rave e outras situações de
atordoante apelo juvenil. O trabalho do diretor Hou Hsiao-Hsien realmente
termina se equiparando às intenções sensoriais de Wong Kar-Wai, ou de Jim
Jamursch, ou de David Lynch –uma inadequação que nasce nas impressões hostis
das luzes de led e acaba no âmago de
nossa angústia.
Temos aqui uma inversão dos valores clássicos que
outrora definiram a solidão: Ao invés daquilo que se presume ser solidão (onde
nos descobrimos, de fato, sozinhos, distante de tudo e de todos, isolados)
surge aquele vazio que se segue à constatação de sermos engolidos pela multidão.
Uma solidão nascida da incapacidade de sermos compreendidos por aqueles mais
próximos.
Pois, ainda que possa parecer paradoxal, Vicky
não é exatamente feliz nessa existência frenética: Ela é, antes de mais nada,
uma dissimulação da felicidade real que gostaria de ostentar. A medida que nos
inteiramos da vida a dois de Vicky e Hao-Hao –transcorrida num apartamento onde
os cubículos simulam uma prisão a refletir a personalidade esmagadora,
intimidadora e potencialmente violenta do rapaz –percebemos que a faceta que
ela exibe a esse mundo resumido a círculos de amizades superficiais e
conhecidos de balada é uma máscara com a intenção de tão somente ocultar suas
insondáveis fragilidades.
Já perto do fim, vislumbramos cenas onde a
protagonista enfim consegue se desvencilhar dessa prisão. E nelas, o filme de
Hou Hsia-Hsien muda. Sua trilha sonora muda (a música violenta e abrupta tocada
por Hao-Hao dá lugar à acordes suaves). Sua fotografia muda (a câmera inquieta,
às vezes, incapaz de focar a personagem principal, então, emula momentos em slow-motion). Até mesmo sua percepção
muda –é como se o filme respirasse diante de uma descoberta da plenitude e da
paz autêntica de sua protagonista, encontrados quando testemunha uma nevasca no
Japão, ou quando pega uma carona com um amigo improvável, Jack (Jack Kao, de “A Assassina”, outro filmaço de Hou Hsia-Hsien).
Tal é o contraste entre esses momentos que eles
parecem pertencer a outro filme, um filme onde a redenção parece possível,
tocável e alcançável. Ou talvez, quem sabe, um sonho. Difícil saber. Concedendo
à sua protagonista (e somente à ela) a autonomia sobre a narrativa de sua
própria vida, o diretor afirma e reafirma ao público que tudo o que ela nos
conta pode perfeitamente não ser lá muito confiável.
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