sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Millenium Mambo


 Refletir sobre solidão é ter em mente, antes de qualquer pressuposto, que se trata de uma experiência extremamente íntima e particular. Não há uma definição reta e certa, nem despida de alternativas para aquilo que se compreende por descobrir-se ‘sozinho’. E se não há uma definição, então automaticamente não é possível haver uma espécie única de representação, seja no cinema, na literatura, no teatro ou na arte como um todo. São vastas as possibilidades para se ilustrar a solidão de um personagem ou, quem sabe, do artista em si. No cinema, já foram inúmeras as tentativas –desde o deslocamento melancólico de “Encontros e Desencontros” até o desamparo físico de “Náufrago” passando pelo isolamento emocional de “Amores Expressos”. Dentre as tantas formas de explorar a solidão, uma delas é pautada, justamente, pela desorientação perante o advento avassalador da modernidade e de sua introdução de novos estímulos sociais para o ser humano: Uma espécie de solidão definida pela incapacidade de lidar com o turbilhão de emoções proporcionado pelas novas ferramentas tecnológicas.

O tempo em que a protagonista de “Millenium Mambo” existe é esse período de turbulência informativa e visual do novo milênio, já o espaço, é na proliferação de elementos de uma grande cidade, seu nome é Vicky (vivida pela bela Shu Qi), jovem taiwanesa cuja narrativa em off elucida breves momentos de sua vida, uma década atrás, quando ainda era adolescente. Vicky não apenas é oprimida pela grandiosidade da metrópole onde sempre viveu, ela é também a contraparte passiva de um relacionamento abusivo com Hao-Hao (Tuan Chun-Hao), aspirante a DJ e viciado em drogas que desperta a atenção de Vicky ao exibir um carisma social que ela jamais teve.

A narrativa se incumbe de relatar as idas e vindas, e os altos e baixos dessa relação, determinando-a como um divisor de águas na transição dela, de adolescente para mulher.

“Millenium Mambo” converte os ambientes noturnos da cidade –notoriamente frequentados por jovens –numa cacofonia visual com a nítida intenção de despertar desconforto no olhar: Somos arremessados, como intrusos desprevenidos, em baladas, festas rave e outras situações de atordoante apelo juvenil. O trabalho do diretor Hou Hsiao-Hsien realmente termina se equiparando às intenções sensoriais de Wong Kar-Wai, ou de Jim Jamursch, ou de David Lynch –uma inadequação que nasce nas impressões hostis das luzes de led e acaba no âmago de nossa angústia.

Temos aqui uma inversão dos valores clássicos que outrora definiram a solidão: Ao invés daquilo que se presume ser solidão (onde nos descobrimos, de fato, sozinhos, distante de tudo e de todos, isolados) surge aquele vazio que se segue à constatação de sermos engolidos pela multidão. Uma solidão nascida da incapacidade de sermos compreendidos por aqueles mais próximos.

Pois, ainda que possa parecer paradoxal, Vicky não é exatamente feliz nessa existência frenética: Ela é, antes de mais nada, uma dissimulação da felicidade real que gostaria de ostentar. A medida que nos inteiramos da vida a dois de Vicky e Hao-Hao –transcorrida num apartamento onde os cubículos simulam uma prisão a refletir a personalidade esmagadora, intimidadora e potencialmente violenta do rapaz –percebemos que a faceta que ela exibe a esse mundo resumido a círculos de amizades superficiais e conhecidos de balada é uma máscara com a intenção de tão somente ocultar suas insondáveis fragilidades.

Já perto do fim, vislumbramos cenas onde a protagonista enfim consegue se desvencilhar dessa prisão. E nelas, o filme de Hou Hsia-Hsien muda. Sua trilha sonora muda (a música violenta e abrupta tocada por Hao-Hao dá lugar à acordes suaves). Sua fotografia muda (a câmera inquieta, às vezes, incapaz de focar a personagem principal, então, emula momentos em slow-motion). Até mesmo sua percepção muda –é como se o filme respirasse diante de uma descoberta da plenitude e da paz autêntica de sua protagonista, encontrados quando testemunha uma nevasca no Japão, ou quando pega uma carona com um amigo improvável, Jack (Jack Kao, de “A Assassina”, outro filmaço de Hou Hsia-Hsien).

Tal é o contraste entre esses momentos que eles parecem pertencer a outro filme, um filme onde a redenção parece possível, tocável e alcançável. Ou talvez, quem sabe, um sonho. Difícil saber. Concedendo à sua protagonista (e somente à ela) a autonomia sobre a narrativa de sua própria vida, o diretor afirma e reafirma ao público que tudo o que ela nos conta pode perfeitamente não ser lá muito confiável.

Não obstante a isso, essas passagens são belas, reconfortantes e recompensadoras ao trocar o “mambo do milênio” e sua tresloucada insatisfação por uma embriagante sensação de serenidade.

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