sábado, 18 de julho de 2020

Amor À Queima-Roupa

“True Romance” é aquele tipo de filme que conquistou com honras o direito de ser chamado cult movie: Reúne características intrínsecas do cinema (e de toda cultura pop, por que não) realizado nos anos 1990 (e, com isso, evoca também algo dos anos 1980...), traz uma sucessão de maravilhosos achados em suas sequências, em sua trama e em seu elenco, reúne duas forças criativas atrás das câmeras que numa primeira impressão parecem incompatíveis (o aqui roteirista Quentin Tarantino e o diretor Tony Scott) e, além de saboroso e envolvente consegue, com frequência, ser memorável.
Em meados de 1993, Tarantino ainda estava prestes a se sagrar como um dos grandes abalos sísmicos do cinema; embora “Cães de Aluguel” já estivesse causando burburinho, “Pulp Fiction” só seria lançado no ano seguinte, e a fama de Tarantino, em Hollywood, corria mais como a de um roteirista tremendamente descolado e talentoso –muito se falava de seu controverso roteiro para “Assassinos Por Natureza”, de Oliver Stone.
Foi então que o diretor Tony Scott, um artesão que sempre cultivou o hábito de oscilar entre o cinema indiscutivelmente comercial de estúdio (“Top Gun”) e as audazes experimentações possibilitadas por um cinema mais autoral (“Fome de Viver”), resolveu dirigir um roteiro que Tarantino havia escrito na época em que ainda trabalhava de balconista numa videolocadora e nele derramou todo seu apreço por filmes de gangster, linguagem cinematográfico, referências culturais, diálogos afiados e altas doses de violência urbana.
Sua trama é algo formidável que se constrói alimentada por clichês (eu diria até por improbabilidades típicas da ficção!), mas cuja esperta percepção do roteirista consegue enxergar os meandros por meio dos quais esses clichês podem ajudar a trama, bem como o momento de subvertê-los para que não a prejudiquem.
Tomemos por exemplo o início, onde vemos o protagonista, Clarence Worley (Christian Slater) num cinema furreca vendo filmes de Sonny Chiba –uma lenda com quem Tarantino trabalhou em “Kill Bill” –e é subitamente abordado pela linda e maravilhosa Alabama (Patricia Arquette, um espetáculo!). Tudo soa tão improvável quanto um garoto que imagina uma fantasia erótica e o roteiro de Tarantino faz disso a grande brincadeira no ponto de partida: Ela (deliciosa que só) puxa conversa. Os dois descobrem afinidades. Resolvem sair juntos para um lanchonete. E logo estão na cama para os finalmentes (!).
Aí então que, acometida de uma espécie de pesar de consciência, Alabama confessa a Clarence que é garota de programa (!) e que foi paga por amigos seus para lhe proporcionar uma noite dos sonhos. Entretanto, agora, Alabama e Clarence estão apaixonados.
E seu amor é, por assim dizer, o estopim que coloca fogo no filme inteiro!
Instigado pelo espírito de Elvis Presley, com quem volta e meia conversa (uma ponta algo ostensiva de Val Kilmer, cujo rosto nunca aparece diretamente), o quê já indica que não é lá muito bom da cabeça, Clarence vai até o cafetão de Alabama para negociar a saída dela daquela vida. Tal cafetão (uma ponta efusiva e eletrizante de Gary Oldman), envolvido até o pescoço com crime e tráfico de drogas, não recebe a notícia com passividade e tudo descamba para a violência, que termina com Clarence fazendo uma chacina no lugar.
A surpresa fica por conta dele, sem querer, levar para casa um mala cheia de cocaína (ao invés de uma mala com as roupas dela!), justamente o que estavam ali negociando.
Clarence e Alabama têm assim um plano: Partir da cinzenta Detroit onde estão para a radiante Los Angeles e lá vender a droga que lhes caiu em cima do colo para com ela financiar sua lua-de-mel e, se possível, viver de brisa para o resto da vida.
Contudo, Clarence não contava com o fato do gangster dono da droga (Christopher Walken) estar em seu encalço e num breve diálogo com seu pai (Dennis Hopper) acabar descobrindo seu paradeiro –a cena do diálogo entre Walken e Hopper é um daqueles momentos antológicos que somente o cinema consegue entregar, graças à atores em ponto de bala como os dois que duelam aqui.
Em Los Angeles, Clarence entra em contato com o amigo Dick Ritchie (Michael Rapaport, de “Poderosa Afrodite”), cujo apartamento ele divide com o maconheiro Floyd (Brad Pitt; já deu para perceber o elenco absurdamente estelar que foi reunido para este filme, não?!).
Dick consegue negociar a droga em posse de Clarence com um figurão de Hollywood (vivido por Saul Rubinek, de “Os Imperdoáveis”), mas, então tudo começa a dar tremendamente errado: Os mafiosos (encabeçados por James Gandolfini e por Victor Argo) chegam à cidade atrás deles; o próprio contato de Dick acaba sendo preso, e entrega para dois policiais (interpretados por Chris Penn, de “Os Chefões” e Tom Sizemore, de “Falcão Negro Em Perigo”) a hora e o local da transação e todos eles –bandidos violentos e vingativos, policiais truculentos e sem noção –se encontram debaixo do mesmo e instável teto, quando Clarence e Alabama tentam vender a mala de drogas, naquele que é um dos desfechos mais apoteóticos do cinema nos anos 1990.
Há fortes momentos que registram o estilo publicitário do diretor Tony Scott em ação (a iluminação estourada na luz difusa; os enquadramentos refinados; o tratamento dramático, quase lírico, dado às cenas), contudo, tão marcante é a personalidade de Quentin Tarantino e seu gosto apurado de cinema que, apesar da função de roteirista, é seu estilo que acaba pesando muito mais em “True Romance”: A verborragia inteligente e minimalista nos diálogos, as guinadas irônicas e auto-conscientes da trama, os embates físicos que fazem referências, ora a Sam Peckinpah (a cena em que Patricia Arquette é atacada por James Gandolfini no motel), ora à John Woo (certamente o grande homenageado no tiroteio final), e a habilidade singular para amarrar todos esses elementos aparentemente tão improváveis e inusitados num todo harmonioso, equilibrado e eficaz.
E, neste caso em questão, vibrante como pouquíssimos filmes da década de 1990 foram capaz de ser.

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