segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Nosferatu


 Uma das vozes mais autorais a surgir no panorama do cinema atual, o diretor Robert Eggers tece uma reimaginação de “Nosferatu”, de F.W. Murnau, um dos primeiros filmes do cinema mudo a estabelecer alguns elementos de gênero e certamente o primeiro a tentar uma adaptação (não autorizada e, de ponta a ponta, clandestina) do romance “Drácula”, de Bram Stoker. O filme de Eggers traz assim uma analogia, vasta em possibilidades a serem contempladas, entre o período de tempo em que as produções foram feitas (1922, o primeiro; 2024, este daqui), os filmes que se moldaram a partir dessas considerações (além da primeira refilmagem de “Nosferatu”, feita por Werner Herzog em 1979) e outras possíveis observações de natureza psicanalítica e metafísica, bastante comuns em sua obra.

O ano é 1838, na cidade alemã de Wisborg, onde vivem os recém-casados Helen (Lilly-Rose Depp, de “Viajantes-Instinto e Desejo”) e Thomas (Nicholas Hoult). Helen padece do que hoje podemos identificar como depressão –para a mentalidade de então, é uma celeuma apontada (até pela própria Helen) como melancolia, fruto da opressão feminina sofrida naquela época, e tal condição, descobrimos, levou-a a um surto extremo quando era mais jovem. Ainda assombrada por tal escuridão, Helen clama numa espécie de oração, na cena que abre o filme, por um anjo da guarda, algum ser de correspondência sobrenatural que venha, de repente, por fim a esse tormento. De certa maneira, ela será atendida...

Desejoso de galgar a hierarquia profissional da firma imobiliária em que trabalha, e de proporcionar uma estabilidade financeira à esposa, Thomas, contrariando os apelos dela, parte numa viagem longínqua a fim de negociar com um cliente morador de um castelo distante, nos Cárpatos. Durante esse tempo, Helen fica sob os cuidados do casal de amigos Friedrich (Aaron Taylor-Johnson) e Anna (Emma Corrin, de “Deadpool & Wolverine”) –já nesse início, o filme de Eggers estabelece Friedrich e Anna como um reflexo reverso de tudo aquilo que, como casal, Thomas e Helen não são: Unidos, estáveis e confiantes.

Após um viagem longa e desgastante –durante a qual adentra um mundo exótico e supersticioso de ciganos mal-encarados e tradições desconcertantes –Thomas chega ao castelo do tal Conde Orlock, o ser sobrenatural em questão (vivido com a minúcia e o critério que está tornando célebre o ator Bill Skarsgaard, de “It-A Coisa”).

Em 1922, interpretado por Max Schreck, e em 1979, interpretado por Klaus Kinsky (ainda que nesse filme, eles o chamassem de Conde Drácula!), o Conde Orlock havia adquirido as feições opostas ao aspecto sedutor do vampiro popularizado e personificado por Bela Lugosi: Orlock tinha os dentes incisivos (e não os caninos) protuberantes, era carece e pálido, a lembrar, muito mais um roedor –muito dessa caracterização se deve, em 1922, pelas correntes de raciocínio do Expressionismo Alemão, surgido na década de 20, na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, e imediatamente anterior à ascensão do Nazismo –nessa mentalidade vigente (como visto em outras obras como “O Gabinete do Doutor Caligari”), o mal sorumbático e algo autômato era mostrado como uma tortuosa deformação da realidade, e o anti-semitismo recorrente trazia personagens que insistiam no registro de judeus, sempre às voltas com questões financeiras (como os assuntos imobiliários do filme), como ratos, tal e qual o Conde Orlock –vale lembrar que na aclamada HQ “Maus”, de Art Spiegelman, os judeus também surgem retratados como ratos. Se essa caracterização ainda fazia algum sentido em 1979 (quando, no “Nosferatu” de Werner Herzog, a angústia estética de Klaus Kinsky encontrava eco na desilusão recorrente do cinema alemão da década de 1970), no “Nosferatu” de Robert Eggers, isso foi abolido: O Conde Orlock de Bill Skarsgaard já não ostenta dentes pontiagudos (ocultos por um bigodão ao estilo dos czares de antigamente) e sua aparência remete a uma espécie de ancestralidade, uma aristocracia de linhagem imemorial –e sempre muito macabra.

O enredo de “Nosferatu” segue muito semelhante aos demais filmes já realizados –e até aos demais filmes envolvendo Drácula já realizados: Thomas se torna prisioneiro de Orlock que viaja para Wisborg a fim de encontrar Helen, levando consigo uma praga nefasta que ameaçará toda a cidade.

É na relação estranha, ambígua e incômoda com Helen que Eggers erguerá o diferencial de originalidade de seu filme: Orlock não deseja, deveras, arrebatar Helen e tomar seu sangue contra sua vontade (algo que ele faz com um ou outro personagem); ele quer que Helen se entregue a ele de espontânea vontade e, para isso, irá submeter todas as pessoas que ela conhece à um mal inapelável por três dias e três noites, até que ela se convença disso. Há, nessa relação inusitada, uma sugestão de que Helen e Orlock já tiveram um encontro antes –talvez, ele já a tivesse atacado no prólogo surreal e sugestivo do início, talvez ele fosse um antepassado dela regressando dos mortos, ou talvez, ele fosse seu próprio pai! As possibilidades plantadas pelo filme de Eggers são inúmeras e ele as deixa, todas, em aberto, inclusive, sugerindo, no famoso final (quando a mocinha se sacrifica, numa cena com nudez muito mais explícita que todas as versões anteriores) que Orlock pode ter, de fato, se deixado matar.

Amargo, lúgubre e profundamente calcado nas considerações da natureza psicológica, sobretudo, de sua personagem principal, “Nosferatu” é uma obra que corre o risco de decepcionar expectadores ocasionais que nutrirem a expectativa por um filme de vampiros nos moldes convencionais –ele é quase uma desconstrução do conceito de vampiros –detendo-se em cenas que evocam muito mais as possessões aflitivas do clássico “O Exorcista”, e sua ênfase na corrupção espiritual do ser humano.

Nenhum comentário:

Postar um comentário