Agora, quero propor algo diferente: Um olhar
mais atento e até especulativo sobre algumas obras que ficaram meio de lado
nesta moda de adaptações de histórias em quadrinhos que pegou de assalto o
cinema comercial, mas que parece ter se concentrado mais no gênero de
super-heróis, deixando de lado outras histórias igualmente sensacionais, e que
poderiam resultar em magníficas obras de cinema.
Maus
–Um dos maiores clássicos das HQs de todos os tempos ao lado de “Watchmen” e “O
Cavaleiro das Trevas”, esta obra poderosa e devastadora feita em preto &
branco poderia render uma animação voltada para adultos. Trabalhoso seria para
o roteiro adaptar a linguagem essencialmente literária com a qual o autor Art
Spiegelman conta, pelos olhos do próprio pai, a história de sobrevivência de
sua família de judeus que, durante a Segunda Guerra Mundial, chegou a estar à
beira da morte no campo de concentração de Auchwitz. Na visão impiedosa e
implacavelmente artística de Spiegelman, os judeus (incluindo seu pai e ele
próprio) são retratados como ratos, os alemães como gatos e os norte-americanos
como cães, num recurso que paradoxalmente traz um insuspeito humanismo na
abordagem de todos eles.
Os Leões de
Bagdá –Outro trabalho que funcionaria como uma animação para
adultos ou até mesmo um desses filmes onde a computação gráfica recria com perfeição
a realidade animal (caso do clássico “Babe-O Porquinho Atrapalhado” ou do
recente “Mogli-O Menino Lobo”), esta fábula sobre a dura realidade (e a confusa
ideologia) da Guerra do Iraque parte de uma história real: Durante um
bombardeio à Bagdá, as bombas libertam quatro leões do zoológico no qual
estavam presos, e esses animais passam assim a peregrinar, num misto de
assombro, perplexidade e descoberta pelos inexplicáveis escombros daquele mundo
humano. O roteirista Brian K. Vaughn imaginou assim, com forte influência do
simbólico “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, como teriam sido as
desventuras, questionamentos e dúvidas daqueles animais inocentes perdidos no
campo de uma batalha da qual nada entendiam.
Um primor.
Retalhos
–Uma das obras-primas do escritor e desenhista Craig Thompson (a outra, e
igualmente magistral é “Habibi”) este volume único e plenamente emocionante
conta um fragmento de sua própria vida, onde ele ressalta a convivência cheia
de dualidades com o irmão mais novo durante a infância, a criação religiosa
infundida pelos pais, as agruras e o fardo de crescer em meio à adolescência,
os revezes particulares da vida em contraponto à experiência catártica do
primeiro amor e ao início da vida adulta.
Uma obra cativante feita de pequenos e
preciosos detalhes que renderia um filmaço.
Ex-Machina
–(não confundir com o brilhante filme de ficção científica estrelado por Alicia
Vikander) Esta é, curiosamente, uma história, também ela, de super-herói. Mas
um super-herói diferente: Mitchell Hundred é (ou melhor, era) o super-herói
conhecido como Ex-Machina, dotado do poder de se comunicar com as máquinas.
Naquele que é lembrado como seu grande momento como herói, ele consegue evitar
(numa magnífica e corajosa jogada de realidade alternativa) que um dos aviões
terroristas destruam uma das torres do World Trade Center no fatídico 11 de
setembro. O resultado? Mildred é eleito prefeito de Nova York! A série de
quadrinhos acompanha assim a sua tumultuada rotina gerenciando uma das grandes
metrópoles do mundo em contraponto ao seu passado heróico que surge em
flashbacks ao longo da trama.
Seria uma bem-vinda e magnífica revisão do
conceito (cada vez mais batido) de super-heróis.
Concreto
–E, por falar nisso, dentre todos os “super-heróis” cuja história vem com uma
necessária e saudável diferenciação, provavelmente o mais notável deles é
Concreto. Escrito e desenhado pelo artista Paul Chadwick (após uma passagem
pela Marvel na qual deve ter se frustrado com o funcionamento esquemático do
sistema), o personagem e sua concepção pulsam de inventividade, idiossincrasia
e humanismo: Concreto é Ron, um escritor que por meio de uma misteriosa abdução
alienígena se vê confinado num imenso e poderoso corpo de pedra e, de um dia
para outro, torna-se objeto de estudo de cientistas militares e, mais tarde, da
mídia sensacionalista.
Disposto a tentar construir uma vida nessa nova
condição (e a lidar com o escrutínio midiático sobre sua figura incomum) ele se
torna uma nova espécie de celebridade, tentando testar os limites de seus
poderes, ora ajudando as pessoas em perigo, ora se submetendo à disputas
humanamente impossíveis.
Já dá para imaginar as maravilhas que Andy
Serkis faria ao interpretar Concreto em uma personificação digital num filme.
Fathom
–O personagem-título é um guerreiro que busca a conciliação numa iminente
guerra entre a humanidade e uma espécie que habita um mundo submarino oculto
nos oceanos, mas a protagonista mesmo é a jovem Aspen que, devido ao fato de
ser um híbrido entre os dois povos, humano e submarino, e além de possuir vasto
poder, representa um papel fundamental nesse conflito. Grande trabalho do
falecido artista Michael Turner (muito mais lembrado por seu talento em
desenhar belas mulheres do que por seu traquejo como roteirista, é bem
verdade), “Fathom” tem todos os elementos melagomaníacos, espalhafatosos e
dramáticos que configuram uma boa adaptação de quadrinhos para o cinema. Houve
até rumores sobre uma adaptação estrelada por Megan Fox depois que ela se
tornou famosa com o primeiro “Transformers”, mas nada foi para frente.
Uma das teorias é a de que “Fathom” seria um
projeto com considerável grau de dificuldade por ser em grande parte ambientado
em alto mar.
Ronin
–(não confundir com o filme de ação homônimo realizado em 1997 por John
Frankenheimer) Talvez o mais cinematográfico dos autores de quadrinhos
(inclusive pela facilidade com que seus trabalhos ganharam os cinemas), Frank
Miller criou, no início dos anos 1980, esta que é, talvez, sua mais ‘infilmável’
obra: “Ronin” é um conto reflexivo, surreal, fatalista e multifacetado sobre os
fantasmas da mente na trama audaciosa de um samurai errante teleportado do
Japão do Século XIII para uma Nova York futurista na qual o demônio que
tencionava matar se tornou controlador do mundo.
A familiaridade da premissa básica não é à toa:
Gendy Tartakovsky (de “Meninas Superpoderosas”) baseou-se essencialmente em
“Ronin” para conceber sua animação “Samurai Jack”, com um resultado muito mais
ameno e pueril.
Na verdade, a trama de “Ronin” mergulha nas
armadilhas da insanidade como forma de fragmentar as neuroses humanas, ao
mostrar a jornada subjetiva de um herói incapaz de compreender seus infortúnios
na mesma medida em que não distingue a loucura de sua própria
imponderabilidade.
Tão complexo quanto “Maus” ou “O Incal”,
“Ronin” tentou ser adaptado logo depois que “300”, realizado por Zack Snyder,
virou febre, pelo mesmo produtor Gianni Nunnari, sob a direção de Sylvain
White, de “Stomp The Yard”, mas os trabalhos cessaram quando os executivos
perceberam que se tratava de um projeto infinitamente mais denso.
O Incal
–Já que falamos nele: Concebido pelo traço incomum do artista Moebius e pela
mente fervilhante do escritor Alejandro Jadorowski (também cineasta!), este
conto amplo, detalhista e inusitado de ficção científica é uma das obras mais
aclamadas dos quadrinhos e ao lado de “Watchmen” (pelo menos antes deste ser
adaptado por Zack Snyder) figurava sempre nas listas das adaptações de
quadrinhos mais aguardadas e paradoxalmente mais difíceis de serem concebidas.
A trama (pra lá de esotérica) acompanha a
trajetória circular de vida, morte e renascimento do detetive particular John
Difool, num mundo futurista às voltas com um cristal dotado de grande poder e
crenças religiosas cujos dogmas podem afetar a própria realidade, além de uma
infinidade de personagens complexos e enigmáticos. Um delírio autoral dos mais
ricos em criatividade que a nona arte já viu.
Especulou-se durante um tempo o nome de Ridley
Scott para uma adaptação.
Y-O Último Homem
–Talvez a obra-prima do roteirista Brian K. Vaughn (criador também das
espetaculares premissas de “Ex-Machina” e “Leões de Bagdá” mencionados acima),
esta HQ é um exercício e tanto de imaginação: Seu protagonista, o jovem metido
à ilusionista Yorick Brown, é o único sobrevivente do sexo masculino num mundo
onde uma epidemia de natureza genética exterminou todos os seres providos do
cromossomo ‘y’, vagando assim num mundo pós-apocalíptico onde as mulheres
prevalecem. A série (magnífica, por sinal) reflete sobre todos os percalços
possíveis de uma situação assim, sob o prisma da verossimilhança.
Um grande filme pedindo para ser feito, e não
faltam jovens atores proeminentes que poderiam interpretar Yorick Brow e sua
parceira a Agente 53.
Estranhos No
Paraíso –(não confundir com o clássico alternativo dos anos 1980
dirigido por Jim Jamursch) Uma das mais sensacionais histórias em quadrinhos de
todos os tempos, acompanha a rotina nada heróica de duas jovens, Katchoo (a
cara da Jennifer Lawrence!) e Francine (Amy Schumer, se pintasse o cabelo de
preto), que vivem às voltas com desilusões, amores e dramas muito reais,
cortesia do ilustrador e roteirista Terry Moore, dono de um talento sem igual
para escrever sobre a dinâmica dos relacionamentos.
À medida que a trama avança (assim como os
anos), camadas das protagonistas vão se revelando transformando-as em pessoas
verdadeiras das quais temos genuíno prazer em nos aproximar.
Uma síntese primorosa e
única entre comédia, drama e história de vida.
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