Clássico dos anos 1980 e responsável por moldar
o caráter de toda uma geração que cresceu assistindo suas reprises na TV, esta
obra infanto-juvenil vem brindada com uma percepção desigual (para os padrões
de hoje) das lições moralistas que infundem a mente das crianças –em sua
concepção sentimentos muito adultos como a rejeição, a melancolia, a
perversidade, a ambigüidade e a dissimulação não estão excluídos da mentalidade
infantil e, portanto, eles pontuam este conto inusitado dando-lhe um viés de
estranhamento que ocasionava certas obras oitentista, mas que aqui ganha uma
salutar propriedade.
À beira da adolescência, Sara (a doce Jennifer
Connelly) é uma garota sensível e irritada.
As coisas pioram quando seus pais a deixam cuidando
de seu irmãozinho à noite.
Incapaz de suportar seus acessos de choro a
menina diz, em tom de infantilidade, que deseja que o rei dos duendes, o leve
para longe.
Por azar isso realmente acontece, e agora Sara
está em maus lençóis. Ela tem 12 horas para atravessar o enorme labirinto que
cerca o reino dos duendes, e vencer todos os seus perigos, caso contrário
Jareth (o sensacional David Bowie), o senhor do labirinto, transformará seu
irmão num duende para sempre.
Uma das razões para a atmosfera incomum legada à
este filme é sua inusitada reunião na equipe criativa: Jim Henson requisitou,
sabe-se lá por quê, como roteirista o ex-Monty Phyton Terry Jones (que dirigiu “A
Vida de Bryan”).
As três influências para o roteiro de Jones se
mostram pontuais ao longo da trama: “Alice No País das Maravilhas”,
logicamente, até pela natureza da premissa ao colocar uma garota que vai para
outro mundo no qual deve confrontar hostilidades surreais e a própria
imaturidade; “O Mágico de Oz”, em suas inserções musicais, na diversidade estética
com que se apresentam os diferentes “companheiros de jornada” da protagonista, e
até mesmo num gesto mais subliminar onde percebemos por meio de detalhes
menores (tal e qual o clássico infantil dirigido por Victor Fleming) que as
aventuras de Sara no labirinto podem ter sido fruto da sua imaginação, uma vez
que os personagens e elementos cênicos de tudo o que se passou no filme
aparecem como pequenos adereços visuais que enfeitam seu quarto.
A terceira influência é mais audaciosa e indicativa
da acidez irônica inerente ao sarcástico Terry Jones que ele não tentou evitar:
“Lolita”, o clássico controverso do escritor Vladimir Nabokov –e essa inspiração
surge, sobretudo, se analisarmos as motivações do personagem Jareth: Ele é,
claro, o vilão, como também é um vilão o personagem Humbert Humbert na obra de
Nabokov. Mas, assim como ele, Jareth é apaixonado pela menina –isso é
explicitado até pela própria jovem já no início do filme.
“Estou cansado de suprir suas expectativas ao
meu respeito!” lamenta ele, na última cena que Bowie divide com Jennifer Connelly.
Como Humbert Humbert, Jareth é, portanto, um
homem torturado por uma paixão a qual não consegue dar continuidade natural por
motivos óbvios, e como em “Lolita”, esse amor o leva a mentir (afirmar que quer
ficar com o irmãozinho dela, quando obviamente ele não lhe desperta qualquer
interesse), a criar subterfúgios vis (o próprio labirinto e suas armadilhas,
assim como o tempo estipulado para que ela o atravesse) e a tentar entrar na
mente juvenil de seu objeto de desejo (naquela que talvez seja a melhor cena do
filme, quando Jareth a aprisiona numa bolha onde um baile de máscaras
representa uma nítida –e à época curiosamente despercebida –tentativa dele em
seduzi-la), para então concluir que como todo o monstro de um pesadelo no papel
a que se permitiu representar, ele deve sair de cena derrotado.
Num de seus primeiros papéis, Jennifer Connelly
não apenas personifica com extraordinária competência essa dualidade complexa
de ‘Lolita’ num conto de fadas –muito bem equilibrada numa beleza cândida e
cativante, mas não destituída de encantos bastante adultos e mundanos –como
também é quase o único ser humano em cena nesta primorosa fantasia que reúne
uma infinidade de bonecos das industrias de Jim Henson, demonstrando o quanto
os efeitos práticos superam em autenticidade e realismo táctil as trucagens
digitais de hoje em dia.
É claro que há também a
presença a um só tempo amedrontadora e caricata de David Bowie como Jareth, rei
dos duendes e cerne de todas as sequências musicais (as canções foram compostas
pelo próprio Bowie) e que contribuem para a atmosfera de estranhamento surreal
e fascínio perene deste filme: um magnífico papel, portanto, que parece caber
como uma luva no “camaleão do rock”.
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