Assim como em “Kagemusha”, o mestre Akira
Kurosawa, em meados dos anos 1980, contou com a ajuda de admiradores muito
célebres para viabilizar projetos bastante autorais. Esta obra só foi possível
pela intervenção de Steven Spielberg e George Lucas, incluindo no aval dos
efeitos especiais, fundamentais para a composição dos oito primordiais
episódios desta coletânea, onde Kurosawa dá corpo narrativa à oito sonhos
distintos que ele teve ao longo da vida. Da juventude à fase adulta.
Em seu subconsciente, esses sonhos (fascinantes
por si só) adquirem temas pertinentes, caros ao próprio Kurosawa, seja por sua
natureza artística ou humana.
Sol Em Meio À Chuva –Contrariando a advertência
da mãe, garotinho foge de casa para testemunhar um curioso fenômeno: Lendárias
raposas, que surgem ao fim do arco-íris, mas cuja visão é absolutamente
proibida aos olhos humanos.
Ele é flagrado e, ao tentar voltar para casa,
uma escolha atroz lhe aguarda como forma de penitência. E tal desfecho, de um
modo ou de outro, diz muito sobre o pesado código de honra japonês e a forma
como isso inflige certa recriminação pessoal às crianças.
Remontando temores certamente recorrentes à
infância do pequeno Kurosawa, este episódio aborda alguns mitos do Japão com
cunho ligeiramente ecológico empregando uma certa linguagem do teatro kabuki.
Um belo trabalho que cresce com o tempo.
O Pomar de Pêssegos –Durante uma distraída
caminhada pelo pomar do quintal, um menino se depara com os caules decepados
das pessegueiras e, logo mais, com os indignados e entristecidos espíritos
dessas mesmas árvores, que surgem para expressar todo o seu descontentamento
com as atitudes do homem.
O garotinho se compadece das mesmas aflições
que as árvores, mas não há muito o quê nenhum deles possa fazer. Ainda assim os
espíritos ensaiam um ritual a fim de restaurar uma certa harmonia perdida.
Delicado, este segmento mostra o cuidado, e um
certo zelo, com que Kurosawa enxergava as tradições culturais de seu país, além
de uma sempre relevante observação sobre a preocupação com o desmatamento, aqui
surgida como uma pueril aflição de criança.
A Nevasca –Um grupo de alpinistas se vê perdido
em meio à uma tempestade inclemente de neve, em alguma montanha não
identificada do Japão. As esperanças minguam uma a uma, até que a providencial
aparição de um fantasma (ou seria um anjo da guarda?) dá novo rumo às coisas.
Talvez o menos elaborado dos episódios, mostra
pelo menos o sempre admirável controle que Kurosawa possui sobre os elementos
técnicos de sua filmagem.
O Túnel –Retornando a pé para sua aldeia-natal
da Segunda Guerra Mundial, um oficial do exercito atravessa um túnel escuro que
conduz uma estrada através de uma montanha.
Ao sair do outro lado, ele é seguido em marcha
pelos soldados que o serviram e que morreram em combate (!), todos com uma
mórbida (e estranhamente bela) maquiagem azul. Ele pede desculpas, e explica
como as coisas agora são diferentes, antes de despedir-se deles e dispensá-los,
com evidente dor no coração.
Não é nada difícil imaginar em qual época de
sua vida Kurosawa vivenciou a experiência deste sonho: O trabalho no exército e
o lamento pelos companheiros que vieram a falecer durante a guerra estão todos
lá, enfatizados numa narrativa singela, precisa e preciosa.
Corvos –Numa corriqueira visita à um museu,
rapaz se vê, de repente, dentro dos quadros pintados pelo artista Vincent Van
Gogh (!). Na representação urgente e minuciosa que fazia, os quadros de Van
Gogh são, portanto, um passeio pelos cenários rurais da Europa, capturados com
o primor pictório típico do mestre Kurosawa.
Num determinado momento, uma surpresa: Lá está
o diretor Martin Scorsese, numa participação especialíssima, interpretando o
próprio Van Gogh!
Um episódio que expõe de forma até divertida as
inclinações artísticas, e os possíveis dilemas autorias, de Akira Kurosawa.
Monte Fuji Em Vermelho –Funcionários de uma
usina nuclear se vêem perplexos quando o material radioativo manipulado ali sai
fora do controle e ameaça a população do Japão, no mesmo momento em que um
vulcão entra em erupção.
A população, aterrorizada, faz o que pode para
salvar as crianças, e essa tentativa desesperada os leva até um beco sem saída:
As ribanceiras que terminam nas águas do oceano, nas quais não têm mais para
onde fugir. Lá, eles ficam à mercê das inúmeras nuvens de gases, de cores
distintas, que conduzem os mais diversos e horripilantes males.
Os terrores que assolam o subconsciente do
Japão, como um todo, são explorados aqui (A tragédia nuclear e o perigo de seus
vulcões inativos), neste que não é um sonho, mas um verdadeiro pesadelo.
O Demônio Chorão –Caminhando por solitários
rochedos, um rapaz encontra um demônio (na representação bastante desigual que
os japoneses têm de demônios, diferentes da imagem ocidental) que lamenta
copiosamente as vicissitudes humanas.
Eles conversam e, enquanto falam, o demônio o
conduz por caminhos que o levam até o local onde as almas torturadas ainda
estão a sofrer, numa visão digna de Dante!
De novo, o mestre volta a relembrar a tragédia
nuclear sob um prisma quase cômico.
Povoado dos Moinhos –Um rapaz e um ancião têm uma breve e curiosa conversa acerca das perspectivas de vida, diferenciadas para cada geração, e do otimismo que cada um se permite conservar. Ao fim, um inesperado cortejo fúnebre oferece uma inusitada mensagem de esperança no ser humano.
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