quinta-feira, 23 de junho de 2016

Sonhos de Akira Kurosawa

Assim como em “Kagemusha”, o mestre Akira Kurosawa, em meados dos anos 1980, contou com a ajuda de admiradores muito célebres para viabilizar projetos bastante autorais. Esta obra só foi possível pela intervenção de Steven Spielberg e George Lucas, incluindo no aval dos efeitos especiais, fundamentais para a composição dos oito primordiais episódios desta coletânea, onde Kurosawa dá corpo narrativa à oito sonhos distintos que ele teve ao longo da vida. Da juventude à fase adulta.
Em seu subconsciente, esses sonhos (fascinantes por si só) adquirem temas pertinentes, caros ao próprio Kurosawa, seja por sua natureza artística ou humana.

Sol Em Meio À Chuva –Contrariando a advertência da mãe, garotinho foge de casa para testemunhar um curioso fenômeno: Lendárias raposas, que surgem ao fim do arco-íris, mas cuja visão é absolutamente proibida aos olhos humanos.
Ele é flagrado e, ao tentar voltar para casa, uma escolha atroz lhe aguarda como forma de penitência. E tal desfecho, de um modo ou de outro, diz muito sobre o pesado código de honra japonês e a forma como isso inflige certa recriminação pessoal às crianças.
Remontando temores certamente recorrentes à infância do pequeno Kurosawa, este episódio aborda alguns mitos do Japão com cunho ligeiramente ecológico empregando uma certa linguagem do teatro kabuki.
Um belo trabalho que cresce com o tempo.

O Pomar de Pêssegos –Durante uma distraída caminhada pelo pomar do quintal, um menino se depara com os caules decepados das pessegueiras e, logo mais, com os indignados e entristecidos espíritos dessas mesmas árvores, que surgem para expressar todo o seu descontentamento com as atitudes do homem.
O garotinho se compadece das mesmas aflições que as árvores, mas não há muito o quê nenhum deles possa fazer. Ainda assim os espíritos ensaiam um ritual a fim de restaurar uma certa harmonia perdida.
Delicado, este segmento mostra o cuidado, e um certo zelo, com que Kurosawa enxergava as tradições culturais de seu país, além de uma sempre relevante observação sobre a preocupação com o desmatamento, aqui surgida como uma pueril aflição de criança.

A Nevasca –Um grupo de alpinistas se vê perdido em meio à uma tempestade inclemente de neve, em alguma montanha não identificada do Japão. As esperanças minguam uma a uma, até que a providencial aparição de um fantasma (ou seria um anjo da guarda?) dá novo rumo às coisas.
Talvez o menos elaborado dos episódios, mostra pelo menos o sempre admirável controle que Kurosawa possui sobre os elementos técnicos de sua filmagem.

O Túnel –Retornando a pé para sua aldeia-natal da Segunda Guerra Mundial, um oficial do exercito atravessa um túnel escuro que conduz uma estrada através de uma montanha.
Ao sair do outro lado, ele é seguido em marcha pelos soldados que o serviram e que morreram em combate (!), todos com uma mórbida (e estranhamente bela) maquiagem azul. Ele pede desculpas, e explica como as coisas agora são diferentes, antes de despedir-se deles e dispensá-los, com evidente dor no coração.
Não é nada difícil imaginar em qual época de sua vida Kurosawa vivenciou a experiência deste sonho: O trabalho no exército e o lamento pelos companheiros que vieram a falecer durante a guerra estão todos lá, enfatizados numa narrativa singela, precisa e preciosa.

Corvos –Numa corriqueira visita à um museu, rapaz se vê, de repente, dentro dos quadros pintados pelo artista Vincent Van Gogh (!). Na representação urgente e minuciosa que fazia, os quadros de Van Gogh são, portanto, um passeio pelos cenários rurais da Europa, capturados com o primor pictório típico do mestre Kurosawa.
Num determinado momento, uma surpresa: Lá está o diretor Martin Scorsese, numa participação especialíssima, interpretando o próprio Van Gogh!
Um episódio que expõe de forma até divertida as inclinações artísticas, e os possíveis dilemas autorias, de Akira Kurosawa.

Monte Fuji Em Vermelho –Funcionários de uma usina nuclear se vêem perplexos quando o material radioativo manipulado ali sai fora do controle e ameaça a população do Japão, no mesmo momento em que um vulcão entra em erupção.
A população, aterrorizada, faz o que pode para salvar as crianças, e essa tentativa desesperada os leva até um beco sem saída: As ribanceiras que terminam nas águas do oceano, nas quais não têm mais para onde fugir. Lá, eles ficam à mercê das inúmeras nuvens de gases, de cores distintas, que conduzem os mais diversos e horripilantes males.
Os terrores que assolam o subconsciente do Japão, como um todo, são explorados aqui (A tragédia nuclear e o perigo de seus vulcões inativos), neste que não é um sonho, mas um verdadeiro pesadelo.

O Demônio Chorão –Caminhando por solitários rochedos, um rapaz encontra um demônio (na representação bastante desigual que os japoneses têm de demônios, diferentes da imagem ocidental) que lamenta copiosamente as vicissitudes humanas.
Eles conversam e, enquanto falam, o demônio o conduz por caminhos que o levam até o local onde as almas torturadas ainda estão a sofrer, numa visão digna de Dante!
De novo, o mestre volta a relembrar a tragédia nuclear sob um prisma quase cômico.

Povoado dos Moinhos –Um rapaz e um ancião têm uma breve e curiosa conversa acerca das perspectivas de vida, diferenciadas para cada geração, e do otimismo que cada um se permite conservar. Ao fim, um inesperado cortejo fúnebre oferece uma inusitada mensagem de esperança no ser humano.

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