quarta-feira, 29 de março de 2017

O Sétimo Continente

Michael Haneke inspirou-se numa história real (sobre o inexplicado e inexplicável suicídio de toda uma família) que muito chamou sua atenção para a criação deste seu primeiro trabalho cinematográfico, datado de 1989 –mas, espantosamente atual e pertinente.
É de se supor o choque provocado por um diretor ao entregar um filme tão absolutamente niilista, focado de maneira tão contundente e inédita no vazio existencial dos personagens. Nós, que já conhecemos o realizador Haneke vindo de uma série de obras consagradas e das quais sabemos muito bem o quê esperar –um fator fundamental para compreender e apreciar seus trabalhos –podemos, por outro lado, ver “O Sétimo Continente” por aquilo que ele é: A primeira expressão de um estilo avesso à adulação do público, voltado para inquietações perenes e, desde o início, amparado numa técnica assimétrica, centrada e esmagadoramente austera.
Georg (Dieter Berner) e Anna (Birgit Doll) formam um casal austríaco de classe média. Vivem bem, são saudáveis e têm uma filha, a pequena Evi.
De início o registro de Haneke da rotina dessa família é alarmante mais pela impessoalidade atroz que ele imprime do que por qualquer coisa que se perceba de errado: As tomadas e os enquadramentos de câmera evitam mostrar rostos, focando apenas na repetição das tarefas domésticas.
Logo, é possível captar uma angústia incontornável carregada de distanciamento e opressão. O consumismo, a mecanização da vida, a ausência de um propósito salutar parece rondar o dia-a-dia daqueles personagens, e Haneke não tem pudor em evidenciar isso com um talento insuspeito.
Ele divide seu filme em três capítulos que registram, rigorosamente, três dias em três anos específicos (1987, 1988 e 1989) antes da tragédia de fato se consumar.
Haneke trabalha com a presunção subconsciente do expectador (alimentada pelo consumo de cinema comercial, convencional e formulaico) de que as respostas para o quê se passa no terceiro ato (a família inicia um processo cruel onde abre mão violentamente de seus bens materiais destruindo-os, o quê conduz ao derradeiro, perturbador e por vezes incompreensível ato no final do filme, quando põem fim à própria existência) estavam todas nos dois primeiros, e embora haja uma reflexão em torno da condição dos países de primeiro mundo como a Áustria –de pessoas materialmente ricas, mas espiritualmente pobres –essa jamais aparece como uma conclusão fechada.
Como sempre ocorre com Haneke, o ato de refletir vem acompanhado da sensação de um verdadeiro soco no estômago. Neste caso, o primeiro de muitos que este autor brilhante e talentoso ainda viria a desferir.

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